A liderança política, nos tempos que correm, parece ser uma coisa cada vez mais complicada. Só assim se compreende uma surpreendente declaração de António Costa: “O problema é que estas primárias não resultaram das virtudes da modernização do partido, mas como um truque para procurar desgastar-me“.
Devo confessar que a primeira vez que li esta declaração, proferida numa entrevista à Visão, reli, esfreguei os olhos e, por fim, acreditei. Mas a custo. Então o líder carismático, o político em quem muita gente votou, “nas autárquicas, para lhe dar força para assumir outras responsabilidades”, tem receio do desgaste mediático? Então o homem provado em inúmeras responsabilidades políticas e governativas acha que três meses de campanha por uma liderança partidária o desgastam?
A confissão é horrenda. Porque implica uma pergunta: o que é que está a desgastar António Costa para ele confessar a sua preocupação desta forma forma tão trôpega e desajeitada? Confesso que só encontro uma resposta: António Costa está a sentir o desgaste do debate político porque há muita gente a querer saber quem é realmente António Costa e, sobretudo, o que pensa António Costa.
O presidente da Câmara de Lisboa está, tudo o indica, incomodado. Ele gosta de ser António Costa, mas não quer que se saiba quem ele realmente é. Numa outra entrevista recente, ao Público, teve outra saída igualmente reveladora. Depois de os jornalistas insistirem para que ele explicasse qual a diferença programática entre ele e António José Seguro, desabafou: “Essa questão é daquelas que só ocupa mesmo os jornalistas. Sem ser os jornalistas ainda não vi ninguém com essa dúvida do que distingue um e outro”.
Um problema de jornalistas? Saber o que Costa pensa de diferente de Seguro é um problema de jornalistas? Mas em que planeta julga o presidente da Câmara de Lisboa que vive? No planeta dos líderes iluminados e omniscientes que não têm de prestar explicações, dos líderes que lhes baste serem… líderes? Lamento desiludi-lo, mas como o “desgaste” mostra, esse planeta é como o da ficção de Pierre Boulle: não existe.
Na verdade há um lado antigo, de outro tempo, na forma como António Costa se tem vindo a apresentar a estas eleições primárias. Isso nota-se nas duas grandes entrevistas que deu ao Público e à Visão: ele acha que basta invocar o seu passado e a sua figura para não ter de dar mais explicações. Ao mesmo tempo também acha que lhe basta falar da esperança do futuro para ultrapassar as dificuldades do presente – a saber: a dívida e o défice. É isso que lhe permite, com alguma soberba, dizer, apesar de a sua candidatura ter produzido muito menos materiais de reflexão política do que a actual direcção socialista, que só viu “o PS despejar 80 medidas a oito dias de umas eleições, mas não o viu a apresentar uma visão estratégica”. Sim, e nós vimo-lo a ele apresentar essa “visão estratégica”, ou isso é só “uma coisa de jornalistas”?
Há duas razões pelas quais esta forma de fazer política é “antiga”, inepta, fora do tempo. A primeira é que os eleitorados já não passam cheques em branco. Estão escaldados. Não querem apenas promessas e “visões”, querem perceber o “como” e o “quando”. É por isso que costa não está a arrasar nas sondagens, como ele esperava que acontecesse.
A segunda razão tem a ver com os limites da política carismática. José Manuel Pureza criticou esta semana, no Diário de Notícias, o método das eleições primárias por considerar que estas representavam uma “americanização da política”: “as primárias não tratam de propostas e de programas mas de caras e de estilos; cuidam do aspecto, não do conteúdo”. Penso que falha o alvo. As primárias, aqui como nos Estados Unidos, em França ou em Itália, já não são apenas um concurso de beleza. A própria lógica mediática, as tais preocupações esotéricas dos jornalistas com as ideias dos candidatos, têm ajudado a que assim seja.
Eu admito que António Costa prefira não se comprometer. Nunca dizer, claramente dito, se realmente acha que se pode coligar à esquerda ou se encara, de preferência, um acordo no centro-direita. Nunca dizer, claramente dito, como cumpre o pacto orçamental e, ao mesmo tempo, acaba com toda e qualquer austeridade. Nunca dizer, claramente dito, como fará se uma varinha mágica não mudar a Europa e não fizer chover euros, como ele espera que aconteça com a mesma fé com que eu acredito no euromilhões. Mas António Costa não se querer comprometer não nos obriga a abstermo-nos de querer que ele se comprometa, de batalhar para que ele se comprometa e diga realmente ao vem, por muito “desgaste” que isso implique.
Uma coisa é António Costa gostar de ser uma espécie de homem invisível – outra coisa é acreditar que isso ainda funciona. Talvez seja altura, por isso, de ser mais visível, de se assumir, de dizer ao vem, de não desconfiar permanentemente do escrutínio jornalístico, de se preparar, no fundo, para ser escrutinado e não apenas para ser levado em ombros. Porque, como se está a ver, a maior dificuldade de Costa não está ser o aparelho de Seguro: está a ser a ausência da “vaga de fundo” que deveria levá-lo, em ombros, até ao poder no Largo do Rato e, depois, no país.
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