Noite cerrada, gelada, de inverno. Dezenas de pessoas agitadas colocam os seus coletes de salvação. Primeiro as crianças, depois os adultos. Com gestos bruscos são postos numa espécie de fila e depois, com os mesmos gestos pouco amigáveis e apressados, empurrados um a um para dentro do bote de borracha. Sentam-se ao lado uns dos outros. Não trocam palavras porque não podem fazer barulho, mas também porque não se conhecem. Alguns nunca se viram. Estão ali casais que conseguiram trazer os seus filhos. Começam a sentir-se todos muito apertados e sem espaço para movimentos. Há mais gente naquele bote de borracha do que seria de esperar. Apertam-se uns contra os outros e embora isso seja desconfortável e até asfixiante, acaba por resultar num pouco mais de calor. Como uma barreira humana a proteger do vento gelado que começa a soprar.
Não há despedidas, apenas derradeiros olhares para trás e para os lados, com olhos cegos pela noite. As mães e os pais aconchegam os filhos no colo o melhor que podem. E dão-lhes as mãos pois o que aí vem vai ser duro. Tentam proteger-se sem saber exactamente como, pois não têm onde se segurar nem como se abrigar. Alguns ficam parados, estáticos, outros nervosos, muito ansiosos. A noite parece ameaçadora e ninguém sabe se a travessia será demorada. Nem sequer se vão chegar à outra margem ou terão que voltar para trás. Ouve-se uma palmada seca nas costas do homem que é forçado a guiar o barco de borracha, e logo a seguir o ronco ainda lento do motor, com o bote já em marcha. Mais uma leva clandestina de gente condenada a arriscar a vida no mar por não poder permanecer numa terra onde deixou de ter lugar para morar.
Mais ao largo, o frio da noite transforma-se em gelo e paralisa os movimentos. As ondas do mar inundam muitas vezes o barco e toda aquela água mais o vento cortante são um flagelo. Parecem varas a chicotear incessantemente as costas, a cara, os braços, as pernas e os corpos já demasiado fustigados daqueles homens, mulheres e crianças que não sabem se o fim da travessia será pisar a terra ou tocar o fundo do mar.
O homem que leva o barco é, ele próprio, um refugiado que os dealers obrigam a guiar, pois a eles cabe-lhes arrecadar o dinheiro sem arriscarem a vida. Mesmo sem nunca ter tido um bote nas mãos, o homem enfrenta o mar sabendo que as águas daquela costa estão cada vez mais patrulhadas. Prudente, chega a desligar o motor algumas vezes. Abranda o ritmo, procura sinais no horizonte e, sem dizer uma palavra a ninguém, volta a arrancar com toda a força. Pagou para ir naquela noite e também para ele esta travessia é uma luta de sobrevivência. Se o barco afundar ou o motor parar, a culpa não é dele nem de ninguém. E, no fundo do mar, serão apenas algumas dezenas a menos com que as autoridades deixam de se preocupar.
A noite fica terrivelmente gelada e as pessoas estão encharcadas até aos ossos. Alguns não trazem sapatos e há crianças sem meias nos pés, com camisolas leves e sem casacos. A meio da travessia uma destas crianças começa a chorar. A mais pequena e frágil de todas. Um bebé de colo. Uma menina que ainda não tem um ano e vai embrulhada nos braços resistentes da sua mãe. Os pais debruçam-se sobre ela, tentando cobrir o seu corpo com o deles. Tentam abafar o choro e manter a bebé minimamente estável. Não conseguem e trocam de posição, o pai pega na sua filha ao colo, põe-lhe na boca alguma coisa desfeita e molhada que retira do bolso das calças. Aconchega-a e tenta embalá-la entre os arranques do bote, debaixo das sucessivas enxurradas das ondas geladas que se abatem sobre eles a todo o momento.
A bebé chora cada vez mais e o seu choro é lancinante. A mãe segura-se melhor e pede ao pai que lhe dê outra vez a criança. O pai arrisca a vida pela sua filha largando até a posição que ocupava na correnteza do banco que vai de tal maneira lotado, que mal ele se levanta deixa automaticamente de haver espaço para se voltar a sentar. A mãe segura na bebé e tenta a todo o custo um equilíbrio na vertigem das ondas desencontradas provocadas pelo mau tempo, mas também pela falta de habilidade do homem a quem obrigaram a guiar o bote. A criança chora cada vez mais alto, mais aflita. Ninguém fala. Todos observam a cena entre solavancos e molhas, castigados pelos ventos contrários, atormentados, gelados. E é no instante em que o barco parece querer abrandar e o mar parece estar a acalmar, que um homem estende os braços decididos para aquela mãe e lhe arranca a bebé do colo. Desesperada por ajuda, a mãe fica dividida entre a surpresa do gesto do desconhecido e a dúvida sobre ele conseguirá que a sua filha pare de chorar.
O homem pega na bebé, põe-na ao alto e sem hesitar lança-o ao mar.
Nota final: o silêncio que fica em nós, porque todos os corações parecem parar, também ficou no barco, onde aqueles pais foram brutalmente impedidos de resgatar a sua filha e proibidos de gritar. É o silêncio mudo em que permanecem desde então. Nunca mais ninguém os ouviu falar e nem sequer chorar. Esta história real foi apenas uma das muitas histórias dramáticas que a Matilde Salema, minha entrevistada desta semana, voluntária no campo de Moria, na ilha de Lesbos, na Grécia, ficou a saber durante o mês em que fez voluntariado dia e noite com refugiados. Os factos foram-lhe narrados com a ajuda de um tradutor, por alguém que vinha nesse mesmo barco. Entre milhares e milhares de pessoas destroçadas, arruinadas e maltratadas, a Matilde encontrou um casal completamente destruído, devastadora e desoladoramente destruído, por quem se interessou e a quem tentou ajudar. Uma mulher e um homem que sobrevivem como espectros no campo, depois de terem morrido com a sua filha naquela noite. Eles não falam, mas nós temos a obrigação de gritar ao mundo que continuam a dar à costa pequenos Aylan que ninguém foi capaz de salvar.