Enquanto em Portugal o triunvirato partidário que nos governa continua a sua empresa de «reversão» e ignora ou finge ignorar que nunca teve os meios financeiros, nem outros, para «virar a página da austeridade», a instabilidade internacional, já de si explosiva, em quase todas as partes do mundo que nos dizem respeito, desde o Brasil, Angola e a própria China até à vizinha Espanha, acaba de se incendiar ao nível do nosso único sustentáculo financeiro e económico, a União Europeia (UE), com o anúncio de um referendo sobre a permanência do Reino Unido (RU) na UE dentro de quatro meses!

O governo português faz de conta que nada se passa mas eu estou convencido de que, seja qual for o resultado do referendo, algo de grave se passará e Portugal, como membro da UE, não deixará de ser salpicado. E dada a nossa pequena dimensão, qualquer salpico costuma afogar-nos primeiro do que os outros. Como prenúncio, basta ver a forma submissa como o governo, que jamais ousou submeter as questões europeias a referendo, aceitou conceder ao RU o incumprimento das suas obrigações em relação aos emigrantes portugueses e às suas famílias. Haverá, em compensação, países da UE que terão de submeter tais concessões anti-europeias, puramente populistas e sem significado económico para um país com a dimensão do RU, aos respectivos parlamentos. Veremos na altura o que se passará. A missa ainda vai no adro.

Todos sabemos que existe entre as elites portuguesas uma tendência soberanista que se confunde frequentemente com um apreço especial pela democracia inglesa e com a soberba que costuma acompanhá-la. Já no resto do RU, como a Escócia e a Irlanda do Norte, a coisa fia mais fino. A democracia inglesa é, supostamente, superior à dos outros países europeus e é certamente o nosso caso, mas há alternativas, como a Escandinávia ou a Holanda. E que não houvesse. O soberanismo, seja ele genuíno ou meramente oportunista, é incompatível a longo prazo com a UE e com a sua orientação federalista implícita. Mas pode-se – e é isso que tem sido feito – continuar a dilatar o prazo da união federal.

A moeda única é que não e foi esta a gota que engasgou os interesses da Inglaterra (não é à toa que temos de mudar constantemente do RU para Inglaterra e vice-versa). A união monetária é de facto incompatível com qualquer pretensão soberanista perante a vocação federal. O nosso actual governo dá vontade de rir, aliás, quando se desdobra em generosidade ao abrir as fronteiras a refugiados que não querem vir para cá… Está, pois, entendido há muito que a City of London – a maior bolsa do mundo, incluindo Wall Street – não quer entrar no euro por óbvias razões de poder, mas também não quer sair. Quanto às grandes empresas nacionais e internacionais instaladas no RU, basta-lhes ter acesso àquilo que, desde o início, constituiu o seu único objectivo, ou seja, o «mercado comum».

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Um facto novo, que agora se percebe melhor e que tem tudo a ver com a instabilidade vertiginosa da actual situação internacional, é que o soberanismo altaneiro dos ingleses se baseava, desde o fim simultâneo da 2.ª Guerra Mundial e do império britânico, na aliança privilegiada com os USA. Foi por isso que o RU usou a sua pertença à UE para forçar o máximo alargamento a Leste, reforçando a NATO e, ao mesmo tempo, aumentando o «mercado comum». Só que agora, devido aos erros monstruosos cometidos pela aliança anglo-americana no Médio Oriente, assim como pelo soberano fechamento político de Obama à Europa, a «relação privilegiada» parece já ter dado o que tinha a dar!

Entretanto, aumentava a oposição populista à pertença europeia – igualmente de fonte soberanista: chamemos-lhe soberanismo popular daí o movimento no sentido do Brexit. As repetidas promessas de referendo nunca cumpridas por Tony Blair foram sucedidas pelas dos Conservadores e, após a recente vitória eleitoral de Cameron, tipicamente não-proporcional, este vê-se obrigado a cumprir a promessa a fim de aplacar o seu próprio partido e desmontar o UKIP com os seus 10% de votos basicamente racistas. Porém, vários ministros do governo de Cameron não se deixaram iludir com a manobra facilitada pelo Conselho Europeu e já anunciaram que iam fazer campanha pelo Brexit. Neste momento, o «sim» e o «não» estão empatados com 41% cada nas últimas sondagens; o resto está indeciso.

É disso que se trata. Não fossem as consequências, como federalista, desejar-lhes-ia boa viagem. O problema é que a solução referendária se arrisca a nada resolver. Cameron só ganhará com o apoio dos Trabalhistas e dos independentistas escoceses pró-europeus, o que não está adquirido. Não é certo, pois, que as magras concessões feitas pela UE, a ratificar ainda por muitos parlamentos, cheguem para resolver o problema. O regresso à base no conjunto da UE corre o risco de acelerar a fragmentação das posições nacionais, sobretudo a Leste, destapando a caixa de Pandora dos sentimentos pró e anti-europeus. Estes sentimentos tanto poderão ser apanhados pela Frente Nacional em França como pelos federalistas genuínos dos países que pertencem à UE desde o início desse extraordinário projecto construtivista que tem ela sido. Sem a União Europeia, a nossa débil democracia provavelmente nem sequer existiria, esmagada que teria sido pelos soberanistas de direita e de esquerda.