1 – “Vitor, há chatices?” . O visado optava invariavelmente por uma mudez resignada. Nunca consegui perceber se o fazia por puro espanto ou aconselhável prudência, o que sei é que a pergunta do então primeiro-ministro (Mário Soares) ao seu chefe de gabinete, (Vítor Cunha Rego,) se repetia com frequência. Mal chegava à residência oficial de S. Bento, Soares subia as escadas, batia à porta de Cunha Rego, que ali aportava quase de madrugada, e perguntava pelas “chatices” como se pode perguntar por uma tia velha. Um extraordinário ritual.
Fora dali, o país ardia. Era ainda a revolução. Ninguém se entendia, tudo se “ocupava”, os ardores radicais estavam por apagar, os militares mandavam, não havia um tostão nos cofres (até o dinheiro das Caixas de Previdência já fora utilizado para pagar a factura dos desmandos).
Sabe-se a continuação: meses depois Soares era “obrigado” a coligar-se se com um (sempre) disponível CDS e depois a chamar o FMI para nos endireitar as contas e a vida. Foi a primeira entrada em cena do Fundo Monetário, não seria a última, os socialistas haveriam de lhe bater à porta por mais duas vezes. Chatices.
2 – Setembro tem isto: é uma ponte. Liga o tempo doce ao tempo árduo, o fulgor do verão à melancolia do outono, a insouciance à responsabilidade, a ilusão à realidade. Tal como as coisas (quero dizer o país) estão, também podíamos, por exemplo dizer que Setembro nos liga às pesadas “chatices”. Ou sobretudo a elas. Embora ainda com mar e ondas, com um resto de festa, de sol e oceano, estamos já a cruzar a ponte a caminho do regresso à vida”de todos os dias”. A vida como ela é, enfim, e não como conseguimos gloriosamente que ela fosse, mesmo que só por algumas semanas.
A verdade é que da ponte de Setembro avista-se um mar de “chatices”, pequenas, médias, grandes, tristes, infelizes, vergonhosas, indecentes. Variadas por isso, no grau e na natureza.
Um dia em Agosto tive de passar por Lisboa. Fiquei estarrecida, circulava-se mal e a custo, apesar do mês, tradicionalmente bondoso com os automobilistas. Num relance, percebi duas coisas. Uma: Lisboa ficará intransitável muito rapidamente. O presidente da Câmara, sem engenho ou disposição para disciplinar as entradas e saídas de carro da capital, e certamente ignorando a galopante compra de carros, preferiu uma luta pessoal, obstinada e quase irracional contra o automóvel. Manda a seriedade que se lembre que nenhuma grande cidade venceu ainda a luta contra o tráfego. Mas estreitar vias, acabar com inúmeras outras, fazer praças, pracetas, ciclovias desertas, relvadinhos, banquinhos onde poucos lisboetas se sentam… serve para quê? Para uma Lisboa “lindinha” , que encha o olho mas “impercorrível”? Em breve quase não se circulará e nem vale a pena evocar o regresso às aulas, o inverno, a chuva, as cheias, basta só falar do que (já) está. Que me lembre, o presidente da Câmara nem consultou os seus munícipes na guerra que iria declarar contra o automóvel, nem lhes deu nada em troca. Sou grande utilizadora do metropolitano mas, circulando ele apenas para meia dúzia de sítios, semi cumpre a sua função; os autocarros? São demasiado incertos e estão demasiado velhos para que se possa confiar neles com a responsabilidade de cumprir horários. Resta o táxi, que não é obviamente uma forma de vida. E, assim sendo, a segunda coisa que percebi é que não vai haver solução. Novas linhas de metro? Daqui a quanto tempo? Mais e mais lestos autocarros? Para quando?
Os lisboetas — alguns, pelo menos — talvez não tenham percebido, mas houve um downgrading. Um bloqueio é um downgrading, apesar do fogo de artificio em que se quer transformar Lisboa. Ou de a toda a hora as autoridades se extasiarem pelo sucesso tão “cosmopolita” da capital. Pelo meu lado, estou mais preocupada com o avesso desse sucesso, basta esperar pela demora. ( E classificar de “chatice” uma cidade bloqueada é dizer pouco.)
3 – Sempre tive a muito concreta sensação de que o Estado funciona mal. É voraz, ineficaz, hostil, pouco sério. Em vez de se contar com ele, tem-se medo dele. Este verão, dei-me porém conta de pior. Uma “chatice” cuja gravidade torna obviamente “proibida” a própria palavra”chatice”: o Estado não me proteje. De todo. Nunca me defenderá, nunca me protejerá. Pior que não ter meios ou não ter competência para o fazer falta-lhe o brio e a vontade. Falta-lhe sobretudo o hábito. Nenhum alto cargo da administração publica foi educado para isso, a dignidade e a responsabilidade da defesa do cidadão não está nas lista de obrigações de nenhuma repartição publica. Tivemos disto dois tristíssimos exemplos cuja natureza tão diversa paradoxalmente reforça essa quase brutal “desprotecção”: o trágico incêndio de Pedrogão, cuja história AINDA não conhecemos. Dela, hoje, três meses depois, só conhecemos os passa-culpas, a bem oleada protecção de interesses e interessados e o inconcebível“fez-tudo o que se podia fazer”, do Presidente da Republica, “oferecido” duas horas depois, embrulhado em afecto. Mas houve 65 mortos e daí nunca se poderá sair. Um luto e muita vergonha. Estão sempre a atirar-nos à cara com a bondade do turismo e como devemos estar reconhecidos aos turistas, tão queridos, mas que dirão eles de um país europeu onde pôde ocorrer um incêndio onde morreram 65 pessoas e cuja resposta foi a mais criminosamente descoordernada de que há memória?
O outro exemplo é evidentemente o do roubo de armas em Tancos, mas na maravilhosa leveza em que vivemos alguém ainda se lembrará dessa outra vergonha? Não sei se os portugueses se espantaram ou preocuparam ao descobrir que se roubam armas en passant, como figos numa árvore sem dono, mas tenho a certeza de que a NATO se espantou muito e não gostou nada. E também me parece que um país que falha até ao ponto de não poder, não saber, não querer ou não ser capaz de defender os seus filhos não merece deles grande coisa.
4 – Chega a ser difícil falar de democracia na incrível saga da Autoeuropa. Também aqui utilizar a palavra “”chatice” seria no mínimo leviano. Convém não estar distraído. Autoeuropa é um sinal, uma fraude, uma traição e um aviso. Um sinal do “ tudo como dantes” no PC, apesar da mascarada da geringonça (e não é o ela estar no topo das sondagens que me impressiona ou comove); uma fraude porque, feita em nome dos “interesses dos trabalhadores”, serve apenas os da CGTP e não todos os outros; é uma dupla traição: aos interesses dos restantes trabalhadores e sobretudo, aos interesses de Portugal, da sua economia e da sua saúde empresarial. E é um aviso: a geringonça é isto.
E chega a ser patético falar de seriedade quanto à própria geringonça. Fale-se antes, e uma vez mais, de ficção. Evoco hoje as célebres e (pouco) mágicas “cativações” que tanta generosidade proporcionaram à governação e sua clientela, mas cujo resultado deixou de ser duvidoso para, em certos e delicados casos, se confundir com uma malfeitoria. Por exemplo, quando se trata da saúde dos mais fracos, mais pobres, mais idosos, mais doentes. Como há muito ocorre nos hospitais e serviços do Serviço Nacional de Saúde, mas cujo custo em danos se tornou agora já indisfarçável. Outra vergonha.
5 – Para “chatices” não parece uma colheita modesta.