O artigo de hoje é consagrado a um elevado sentimento, o amor. No Natal, fala-se tanto dele que convém, em benefício da variedade, lembrar a sua forma mais comum, nem que seja pelo prudente artifício do recurso às palavras alheias. Se as palavras forem as certas, está bem. São as certas.

As descrições filosóficas do amor andam sempre à volta, compreensivelmente, do par presença/ausência. Platão, por exemplo, pôde escrever que o amor, eros, “indica uma corrente que corre do exterior para a alma, não peculiar a quem a experimenta, mas introduzida pelos olhos”. O amor não se encontra na posse do sujeito: escapa-lhe. Encontramos a mesma ideia em Aristóteles, que acentua, também ele, a origem do amor na visão: “o prazer causado pela visão do ser amado é o começo do amor; ninguém ama, com efeito, sem antes ter sido encantado pelo exterior da pessoa amada, mas aquele que experimenta prazer com o aspecto de uma outra pessoa nem por isso ama, é unicamente quando lamentamos a sua ausência e quando desejamos apaixonadamente a sua presença”. E : “O amor começa sempre desta maneira : não nos limitamos a ter prazer nesta presença; mas à lembrança da pessoa ausente acrescenta-se a dor de dela estar afastado”. O lamento da ausência e o desejo da presença são a pedra de toque do amor, esse sentimento que começa com a visão.

Podemos, é verdade, optar pelo desejo da existência do ser amado, independentemente das contingências da sua presença ou da sua ausência. É, parece, o sentido do amor de Deus em Santo Agostinho: o volo ut sis, quero que tu existas, que na vida corrente não se dirige necessariamente a Deus, é uma resposta ao sofrimento provocado pelo temor da não-existência. Espinosa parece próximo desta posição quando escreve que “o amor não é senão uma alegria que acompanha a ideia de uma causa exterior”. Mas rapidamente retorna ao par presença/ausência : «quem ama, esforça-se necessariamente para ter na sua presença a coisa que ama». Em Hobbes, é o desejo que é sinal da ausência, o amor ancora-se na presença: “Desejo e amor são a mesma coisa; salvo que, por desejo, significamos sempre a ausência do objecto; por amor, mais comumente, a presença do mesmo”. Em Locke, igualmente, o desejo relaciona-se com a ausência. Mas amor e desejo andam de mãos dadas. Montaigne, no limite da filosofia, escreve exemplarmente : «O amor não é senão um desejo furioso daquilo que nos foge».

E a poesia de John Donne exprime a mesma ideia, ao mesmo tempo que aponta para um desejo independente do par presença/ausência:

Dull sublunary lovers
(Whose soul is sense) cannot admit
Absence, because it doth remove
Those things which elemented it.

But we by a love, so much refin’d,
That our selves know not what it is,
Inter-assured of the mind,
Care less eyes, lips, and hands to miss.

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E Dryden, no Spanish Friar:

The pleasure of possessing
Surpasses all expressing
But ‘tis too short a blessing
And love to long a pain.

As citações de poetas podiam-se multiplicar, como as dos filósofos.

Claro que a literatura – a poesia e o romance – diz estas coisas muito melhor do que a filosofia. Mas há algo naquilo que escrevem os filósofos que é intrinsecamente verdadeiro: o amor não pode ser concebido sem um desejo de posse, uma posse daquilo que nos entra pelos olhos, como diz Platão (que, como se sabe, aspirava a algo mais, próximo daquilo de que fala Donne). E é também verdade que é o sentimento de ausência que nos revela o amor. Vê-se dificilmente como o “quero que existas”, ou o simples contentamento na existência de uma causa exterior, possam satisfazer o desejo do amor. Trata-se exactamente de capturar essa causa exterior, de eliminar a ausência. O que nos mergulha nas trapalhadas que sabemos.

Essas trapalhadas são, no entanto, o melhor da nossa vida, aquilo de que nos podemos mais legitimamente orgulhar. O volo ut sis não basta, e o sentimento de que não basta é bem real. Mesmo quando, pouco a pouco, para ele naturalmente nos inclinamos. O amor que deseja John Donne não é o do comum dos mortais que conhecemos, qualquer que seja a sua idade. O desejo de apropriação completa é até, num certo sentido, cada vez maior com o tempo. É preciso que alguém nos lembre o que vimos, lemos, ouvimos, senão tudo se torna amargo. Precisamos de alguém que envelheça connosco, para ajuizar o sentido, o sem-sentido, a humanidade, ou a crueldade espúria, dos nossos pensamentos. Como belamente dizia Donne, somos dull sublunary lovers, confusos amantes sublunares. Em mais do que um sentido.

Não escrevo isto para, com insuportável adolescência, denegrir grandes feitos espirituais. Era o que faltava. É só que nesta altura do ano, em que se costumam fazer vários votos para nós e para os outros, me apeteceu também a mim desejar um bom ano humano aos portugueses, sem discriminação de raça, religião, sexo ou partido. 2016 arrisca-se a ser um ano difícil. Mas vivemos em democracia e nada nos impede, para voltar a Montaigne, de perseguirmos aquilo que nos foge. Bom ano!