Anda a circular nas redes sociais uma imagem de um número que pode ser um seis ou um nove e duas pessoas, uma de cada lado, a ver um número diferente. Nós vemos o número deitado e por isso percebemos que qualquer uma das pessoas tem razão, dependendo da posição – perspetiva – em que se encontra. Esta imagem ilustra um conjunto de problemas políticos, que desvendam um pouco das crises identitárias que atravessam o Ocidente. Um pequeno parêntesis para dizer que 2008 não foi apenas o ano em que baixou sobre nós a crise financeira, que passou a económica, pouco depois a política e agora a identitária. Foi o ano em que uma rabanada de vento levantou os tapetes para onde se tinham varrido todos os fantasmas. E quase dez anos depois eles ainda andam por aí.
O primeiro dos conceitos é o passado coletivo de cada nação: como cada pessoa, cada país tem um passado com virtudes e erros. A diferença é que nos imaginários coletivos, os erros são permanentemente filtrados – e muitas vezes agravados – por novas formas de pensar. E gerações presentes carregam nos ombros culpas que não existiam quando os erros foram cometidos, ou responsabilidades de erros de facto que são de avós, bisavós, trisavós e por aí fora.
Abstrações? Não. Por exemplo, muitos estados europeus carregam as culpas do colonialismo – aceite com benigno na altura em que começou (e não, não sou a favor do colonialismo. Estou apenas a constatar factos) – e as derivas totalitárias dos século XX – monstruosidades de facto, no momento em que foram cometidas. E as elites políticas, na procura de corrigir e minorar o erros, decidem em conformidade. Por outras e mais simples palavras, pensa-se, compreende-se e decide-se com o peso do passado. Pensa-se, compreende-se e decide-se com as lentes coletivas ainda divididas por preconceitos (no sentido de conceitos pré-concebidos e não necessariamente pejorativos) ideológicos. A ideia não pode nem deve ser esquecer o passado, é libertar-se da prisão ao passado que prende as decisões presentes – se estas não favorecem as populações de hoje.
O segundo elemento são os grupos sociais em cada país. Os sociólogos chamam-lhes classes sociais, mas a verdade é que o conceito é profundamente redutor. Talvez só agora, na era das “maiorias silenciosas”, nos apercebamos que as classes médias, que supostamente se deveriam manter maioritárias para sustentar o pensamento liberal e o estado social estejam em apuros. E o resultado não é o aparecimento de grupos sociais com base nos rendimentos, mas com base em visões do país e do mundo em muito alternativas ao poder político tradicional (e às suas decisões carregadas do peso do passado) – daí os fracos resultados de partidos políticos e/ou de soluções de governação tradicionais. As “maiorias silenciosas” querem sacudir culpas alheias do capote, olhar para o futuro com os seus próprios preconceitos e fazer-se ouvir nos seus receios sem rótulos (trazidos do passado) com que não se identificam. Ou querem o regresso a um passado tão “glorioso” quanto imaginado, mas que, acreditam, pode ser recuperado na contemporaneidade.
Abstrações? Não. As populações cansaram-se das soluções estabelecidas. Querem dizer o que pensam sobre a imigração, os impostos, o estado social, até o tipo de regime. Veja-se a Polónia e a Hungria em que soluções cada vez mais autoritárias vão sendo aceites pelas populações em nome da quebra com o passado recente – i.e. os pactos das elites sobreviventes do comunismo com os revolucionários liberais – para um futuro com raízes num nacionalismo mais antigo, por sentirem com maior ou menor conhecimento, que os modelos se esgotaram ou não correspondem aos seus valores mais íntimos, dos quais não querem abdicar. Ou os Estados Unidos, em que uma América a que chamamos “profunda” se cansou de ver os seus valores enterrados e desprezados e votou em massa em Donald Trump. Ou em França, em que a população escolheu um presidente quase sem passado político, provavelmente por acreditar que se podia começar de novo. E claro, a força que os partidos populistas radicais têm em quase todos os países. As populações não os elegem para governar, mas dão-lhes votos suficientes para porem em cheque os líderes tradicionais.
O último elemento é o contexto. Voltamos a 2008, o ano em que se soltaram os fantasmas. Há momentos na história que existem confrontos entre grupos sociais que em política se deve dizer narrativas morais. Em muitos casos, no Ocidente, a polarização dessas narrativas morais é tão grande que é difícil encontrar consensos. É aqui que estamos. Soluções? Há pelo menos três coisas que se podem fazer.
Primeiro, diminuir o fosso entre o povo e as elites. As sociedades ocidentais e democráticas chegaram a um ponto em que as elites se sentiram suficientemente confortáveis para governar (com o peso do passado) sem sentir o pulso das populações. E por isso falharam-lhes. Segundo, deixarmo-nos de preconceitos e discutir política em termos de narrativas morais, com a coragem que é necessária para perceber que não há uma resposta certa. Há soluções de compromisso. Terceiro, abdicar do relativismo e denunciar radicalismos e outras ideologias perigosas por aquilo que são. Por muito que populistas digam o que as opiniões públicas querem ouvir, é preciso dizer, as vezes que forem precisas, que por trás do discurso habilidoso para captar votos há programas xenófobos, antidemocráticos, antiliberais e até autoritários, que a prazo podem verdadeiramente mudar a face do Ocidente.
Tanto nos preocupámos com a possibilidade do “Outro” mudar a face da nossa “civilização” que nos esquecemos que, a maioria das vezes, as civilizações se corroem por dentro. Precisamente nos momentos da história em que uns teimam em ver um seis e só um seis, e outros querem ver um nove e só um nove.