Se há coisa que a administração Biden já habituou os estudantes de política externa norte-americana é o cuidado que tem com as palavras que usa. Essa precisão de termos é explanada num documento recente, a Estratégia de Segurança Nacional Interina, que pretende antecipar-se à tradicional Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América, um documento que todos os presidentes publicam uma vez por mandato e que delimita a forma como a América se posiciona no sistema internacional.

Este documento não traz muitas novidades relativamente aos discursos que Joe Biden foi fazendo e às posições políticas que foi tomando, de que falámos aqui. Mas há três elementos que gostaria de realçar, elementos esses que ganharam vida empírica este mês, nomeadamente no que se refere à política externa americana para a Ásia.

O primeiro é a afirmação que a política externa norte-americana não pode voltar a ser o que era em 2016. Ora, isso é o reconhecimento que o mundo mudou consideravelmente desde que Biden foi vice-presidente de Obama até se tornar presidente dos Estados Unidos. E não mudou (apenas, nem sobretudo) devido à presidência Trump. Transformou-se, porque Biden reconhece dois aspetos: primeiro, que o sistema internacional está em transição de poder – e que, quer os Estados Unidos queiram quer não, estão em “guerra de transição” – e que, por isso mesmo, as estratégias usadas até aqui estão obsoletas.

Segundo, para que os EUA voltem a ter uma posição de poder confortável têm que enfrentar a China, “em particular”, devido à sua tendência para uma assertividade cada vez maior e porque é “o único competidor potencialmente capaz de combinar o seu poder económico, diplomático, militar e tecnológico para empreender um desafio sustentado a um sistema internacional estável e aberto”. Por outras palavras, a chave da política externa de Biden – em consonância com Donald Trump – é não deixar Pequim transformar-se numa grande potência de alcance global.

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Como? A resposta leva-nos ao terceiro elemento: a supressão da palavra “multilateralismo”, substituída por “ação coletiva”. E a substituição da palavra “contenção” pela palavra “dissuasão” no que se refere à China.

Multilateralismo é uma palavra velha, que ganhou um determinado significado. Quando pensamos nela, pensamos imediatamente em instituições internacionais de carácter liberal em dois modelos diferentes: ou instituições “universalistas” como as Nações Unidas, que foram transformadas nos anos 1990 para pôr em prática um conjunto de políticas de expansão da democracia e da economia de mercado; ou em instituições como a NATO, comunidades de democracias que são a um tempo altamente institucionalizadas e marcadas por traços de regime que justificam a sua existência. Como já foi dito noutros textos, se há dois valores que Joe Biden preza são as alianças (“a América não pode fazê-lo sozinha”) e a “vantagem competitiva norte-americana” que é a “democracia”. Mas para que estes dois valores se concretizem, é preciso criar formas de associação mais versáteis, com características diferentes das alianças e instituições tradicionais. Grupos como o Quad, de que falaremos em seguida.

Antes, é importante dizer que Biden percebeu que a “contenção” de Pequim já não é suficiente. É preciso ir mais longe. Na senda da diplomacia musculada que nos tem vindo a habituar, a administração norte-americana quer “dissuadir” a China de continuar o seu caminho de assertividade e “coerção regional”. A mudança de palavras corresponde à transformação que se quer imprimir na relação sino-americana cuja dinâmica marcará, pelo menos, a próxima década.

Quanto à operacionalização empírica, a parceria – seria exagerado chamar-lhe aliança – que estará na linha da frente desta “dissuasão” é o Quad (Quadrilateral Security Dialogue). Constituído, episodicamente, em 2004, para acudir às vítimas do tsunami no Pacífico, foi resgatado ao esquecimento pelo presidente Trump em 2017 e reforçado em 2019 para apoiar o Sudeste Asiático na recuperação da pandemia e da crise económica. Rapidamente, os quatro países que o compõem – EUA, Japão, Austrália e Índia – estavam a fazer exercícios navais conjuntos, dando um sinal claro à China, mas discreto no que toca ao resto do mundo, que percebem e pretendem contrariar a sua vontade de dominar o Mar do Sul da China.

A administração Biden – pressupõe-se, que com muita diplomacia, ajudada pela perceção cada vez mais generalizada da transição de poder e pela mudança de perceção indiana da ameaça chinesa depois dos confrontos nos Himalaias – teve a primeira reunião virtual ao nível dos chefes de Estado. Ficou clara na declaração conjunta qual é a fórmula desta parceria: “Perspetivas diversas unidas por uma visão comum de um Indo-Pacífico livre e aberto (…) inclusivo, ancorado em valores democráticos e sem constrangimento coercivo.” Os parceiros também estão dispostos a enfrentar os “desafios de segurança que a região tem pela frente”.

Não numa forma de multilateralismo clássico, mas em “ação coletiva” como demostra o programa de diplomacia de vacinas (descobertas nos Estados Unidos e no Japão, produzidas na Índia e distribuídas pelos países mais pobres do Sudeste Asiático pela Austrália), mas também de forma “dissuasiva”, sendo que um dos mais ambiciosos projetos do Quad é concorrer com a China no refinamento de terras raras – das quais depende a tecnologia do presente e do futuro – e defender os enclaves marítimos que Pequim tenta dominar.

A estratégia de Biden para a Ásia – encaixada numa estratégia mais vasta para o sistema internacional, no qual as democracias, lideradas pelos Estados Unidos, e as autocracias estão em confronto direto – não é perfeita. Facilita a “quase-aliança” da China e da Rússia e propõe um sistema internacional em guerra de transição de poder num formato bipolar, o que encerra uma forte possibilidade de conflito permanente. Mas tem, pelo menos, três elementos consideráveis: (1) a capacidade de captação de aliados reticentes, como a Índia; (2) o entendimento correto do sistema internacional; (3) e uma espécie de retorno a uma estratégia tipo guerra fria (não à Guerra Fria): a tentativa permanente de desgastar os rivais, a cooperação com eles em várias vertentes de interesse transversal e um regresso à preservação da democracia e à liderança do mundo livre, com um empenho que há muito não se via. É uma estratégia ambiciosa e ousada. Mas tem por base uma leitura histórica e uma perceção do sistema internacional que se adequam ao momento em que vivemos hoje. E isso não é pouca coisa.