Há muito que o mundo não se via sem liderança internacional. Os Estados Unidos de Trump estavam resolvidos a ser uma “potência normal” em vez de liderar o sistema internacional. E a potência que se seguia em ordem de importância era a China, que há algum tempo procura um lugar ao sol da hierarquia do poder mundial. No entanto, este ano, segundo a Pew Research Center, uma das mais reputadas empresas de sondagens do mundo, que fez um estudo em outubro, a perceção desfavorável de Pequim atingiu picos históricos não só nos EUA, mas em diversos países do mundo.

Isto deve-se, evidentemente, à péssima gestão que o regime de Xi Jinping fez da pandemia. Escondeu a existência do vírus das entidades internacionais competentes, deixou-o sair de avião da China para os quatro cantos do mundo, quando estava demasiado espalhado ofereceu ajuda internacional e despachou material médico sem qualidade (algum dele pago pelos recetores) para onde foi possível.

Ainda mandou equipas médicas para os países mais aflitos, como Itália, mas já foi tarde demais. Já todos sabíamos que o vírus tinha tido origem na China e que Pequim não teve a mais pequena preocupação em deixá-lo transformar-se numa pandemia mundial, a fim de tentar encobrir o fracasso do regime em contê-lo dentro das suas próprias fronteiras. Por outras palavras, por muito que Xi Jinping (secundado por Putin) fale de multilateralismo, todos sabemos que este precisa de um líder e a China não esteve, simplesmente, à altura.

A história podia ter ficado por aqui. Mas não. E a razão por que não ficou é simples: pela primeira vez na história recente, a China está no centro dos holofotes internacionais e tivemos a oportunidade de ver de perto e com boa luz o tipo de regime que Pequim é e que tipo de ator internacional que quer ser.

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Ainda há três dias, o Washington Post provou, através de um documento encontrado pela IPVM, que a Huawei, em conjunto com a startup Megvii, fez uso da inteligência artificial, desenvolveu e testou com sucesso um software de reconhecimento facial que permite distinguir traços étnicos dos Uigur e enviar alertas para a polícia chinesa. Os Uigur são uma minoria muçulmana que está a ser sistematicamente perseguida e encerrada em “campos de reeducação”, como têm vindo a alertar ativistas e jornalistas de todo o mundo.

A Huawei não desmente a veracidade do documento, mas alega que não passou da fase de testes. Mas a verdade é que esta informação vem juntar-se a um conjunto de outras, como, por exemplo: os sistemas sociais de pontos, em que a tecnologia e a híper-vigilância nas suas várias valências se juntam para atribuir aos cidadãos castigos e prémios de bom comportamento; a repressão dos manifestantes de Hong Kong; e o branqueamento da História – os mais jovens ignoram a existência do massacre de Tiananmen –, só para nomear alguns exemplos que demonstram que a China é a primeira autocracia tecnológica do mundo. Mas pode não ser a última. Há sempre Estados dispostos a seguir exemplos destes.

Internacionalmente, como mostrou a pandemia, Pequim também já não esconde que quer ser uma grande potência. Aliás, como explica Vasco Rato no seu livro De Mao a Xi: O Ressurgimento da China, Pequim tem um objetivo muito concreto: libertar-se do “século de humilhação” que, do seu ponto de vista, lhe foi imposto pelo Ocidente e pelo Japão na sequência das guerras do Ópio e das guerras Sino-Japonesas, e retomar o seu lugar de “grandeza” no sistema internacional, que na ótica chinesa é nada mais que o de primus inter pares. Daí a importância dos projetos das Rotas da Seda terrestre e marítima. São uma espécie de cerco ao mundo.

Como já disse noutras ocasiões, as potências não são todas iguais. O comportamento interno da China, a culpa que atribui ao Ocidente pelo seu declínio e a forma como mostrou não se importar com o destino do mundo relativamente à pandemia são uma pequena amostra do que Pequim pode ser como líder internacional. A primeira tentativa séria foi este ano, mas outras se seguirão. Numa altura em que a chamada “política de poder” volta a estar na ordem do dia, líderes internacionais têm cada vez menos desculpas para ignorarem o perigo que a China representa para a nossa segurança. E podem começar a demonstrá-lo nos seus negócios referentes ao 5G.