Em 2018, os autores liberais Ivo Daalder e James Lindsay escreveram um livro chamado The Empty Throne uma espécie de lamento ao fim da hegemonia americana e ordem liberal internacional. O argumento deles era que os Estados Unidos de Donald Trump tinham, pura e simplesmente, desistido de liderar e de ordenar. Focados na política interna e numa espécie da obsessão em refazer tratados comerciais, os EUA, como eram, tinham desaparecido. O trono estava vazio e restava um candidato a ocupá-lo, a China, ou um vazio de poder.

É um exagero falar de ausência de liderança internacional. Os Estados Unidos não desistiram do Médio Oriente – ainda que tenham implementado uma política externa completamente diferente – e certamente não estão em vias de se retirar da Ásia, antes pelo contrário. Aquilo a que já não estão dispostos é ao multilateralismo hegemónico a que nos habituaram nos últimos setenta anos.

Essa ordem consistia numa grande consenso entre democracias em que os valores comuns eram a razão para manter alianças e parcerias em tempo de paz. O multilateralismo era, supostamente, um método de governança que permitia os países que pertenciam à ordem dialogar sobre questões internacionais mesmo que, na verdade, as suas capacidades não lhes permitissem ter uma palavra final, nem perto disso. Mas como muitos dos mitos da história, o multilateralismo tornou-se uma peça ideológica em que era preciso acreditar, e quando cai uma ilusão, essa ilusão cai com estrondo.

Fora dessa ordem democrática estavam os “descontentes”. Aqueles que, independentemente do tipo de regime, por várias razões históricas, se viram excluídos de uma arquitetura dita “inclusiva” para quem quisesse cumprir as regras do jogo. À cabeça, por razões óbvias, a China e a Rússia, mas, também de nariz sempre torcido, o Brasil e a Índia. No entanto, a hegemonia americana foi-se mantendo. Primeiro porque era precisa para conter a União Soviética, depois porque era necessário um ator que regulasse, com maior ou menor acuidade, as relações entre estados terceiros.

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É assim, através do poder, que se mantém a paz. A paz é sempre imperfeita porque nenhuma hegemonia consegue dirimir todos os focos de conflito. A hegemonia é sempre alvo de todas as críticas – muitas delas justas – que vão desde demasiada energia na ação, demasiado espírito cruzado, demasiada apatia. Mas os últimos meses mostraram-nos que viver sem hegemonia, ou com outra hegemonia, pode ser muito mais perigoso e pode influenciar de forma determinante as nossas vidas.

A ausência americana (e já agora – num parênteses não há garantias de grandes regressos ao passado com Joe Biden, apesar das promessas. Por mais atlantista que seja o candidato, o mundo que Biden quer governar mudou e a política externa americana terá que continuar mudar com ele, com ou sem trono vazio) deixa em aberto três cenários.

Em primeiro lugar, a China tudo fará para ocupar o lugar vazio deixado pelos Estados Unidos. Mas não para já. Por muito que Pequim quisesse, a pandemia mostrou não só a sua falta de capacidade de liderança global, como lhe estragou os planos tecnológicos (imprescindíveis para uma potência do século XXI), já que, em consequência do seu comportamento face ao vírus, vários países recusaram (ou recuaram) negócios com a distribuidora chinesa de 5G, a Huawei. Quer no Ocidente quer na Ásia, percebeu-se que uma hegemonia chinesa seria profundamente hierárquica, influenciando negativamente a soberania dos estados e – inevitavelmente – a vida dos cidadãos, especialmente nas democracias liberais.

A segunda possibilidade é uma reorganização regional do sistema. Veja-se, por exemplo, como a Europa, ainda que desarmada, está apostada em criar as suas próprias cadeias de valor para estar menos dependente dos fornecimentos asiáticos. Nesta perspetiva, há vazio de poder – e de ordem – e entraremos numa competição económica que dará cabo do restinho da globalização. E as competições económicas, mais tarde ou mais cedo trazem conflitos políticos. A Europa sabe que precisa do seu aliado Americano, mas não sabe se o seu aliado Americano vai estar disponível para as suas necessidades (mais uma vez, mesmo que seja Joe Biden o novo presidente dos Estados Unidos).

Paralelamente – e esta é a terceira possibilidade – é provável que as próximas décadas fiquem marcadas por uma longa transição de poder. É importante pôr a hipótese que a Guerra Fria tenha sido isso mesmo – uma longa transição de poder – mas esta que estamos a viver agora com três características diferentes: nem se espera que um dos adversários colapse, nem que a China se comporte como a União Soviética, nem estamos certos que tipo de ator internacional será os Estados Unidos. Ironicamente, Pequim é mais previsível: tentará impor a sua vontade a terceiros da forma que sabe fazer, entre o insidioso e o autocrático, e usará todos meios que dispõem para atingir os seus fins. Estes longos anos de tensão tenderão a terminar com um acordo – provavelmente com mais potências – quando estivermos todos muito cansados de tumultos. Espera-se que mais cedo do que tarde.

Porque afinal, precisamos de uma hegemonia. Ou de um conjunto de estados poderosos que criem uma paz duradora. Ainda que passemos a vida a maldizer o poder dos outros. A verdade é que, quer gostemos quer não, a alternativa – o vazio de poder, a competição desregrada de grandes potências – é francamente mais difícil. Mas desconfio que ainda teremos muito que esperar.