José Manuel Durão Barroso termina hoje o seu segundo e derradeiro mandato como Presidente da Comissão Europeia. Durante 10 anos, o português exerceu um dos cargos mais mediáticos do Mundo, a par do de Secretário-geral da ONU e da chefia dos Estados ou dos governos dos países mais influentes do planeta.

Foi figura de 1ª página de grandes meios de comunicação internacionais, elogiado e criticado em partes desiguais e momentos distintos. Ao começar o seu mandato, o jornalista Jean Quatremer – veterano das lides europeias – chamou-lhe “très dur” e “argileux”. Vale a pena traduzir do artigo publicado pelo Libération a 14 de Abril de 2005: “Será o seu nome a chave (do mistério)? Durão Barroso, em tradução literal do português, significa muito duro (durão) e argiloso (barroso). José Manuel Très Dur Argileux. Uma contradição ontológica que forja um homem. De que matéria é então feito o Presidente da Comissão Europeia?”.

Todo um programa. E, já agora, um preconceito. Mas afinal, José Manuel foi Durão? Ou Barroso? Que balanço fará a história destes 10 anos de condução das políticas europeias por parte deste português, com um currículo que o torna sem dúvida um dos mais importantes homens políticos do nosso país no entre-séculos (e já na fase final do século XX), primeiro-ministro, ministro dos negócios estrangeiros, presidente da Comissão e o que mais se verá?

Tentemos então, eu e os leitores, um exercício de distanciamento. Eu sei que não é fácil. Proponho-me tirar os óculos de ver ao pé e olhar de longe para a realidade dos mandatos de Barroso. Peço aos leitores, se quiserem, objectividade e que ponham de lado sentimentos como os que muitos sentiram (e sentem) relativamente à opção que Barroso fez pela Comissão Europeia, em 2004, deixando o governo português; sem esse distanciamento, dificilmente apreciaremos com justiça o trabalho feito em Bruxelas. A análise, necessariamente sucinta, divide-se em 3 partes: primeiras reacções; trabalho feito; contexto.

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As primeiras reacções, como sabemos – e Barroso reconheceu nas entrevistas mais recentes –, não são propriamente boas. A generalidade da imprensa internacional não foi meiga com o nosso compatriota, com o já referido Quatremer à cabeça: “Os raros momentos de coragem do antigo primeiro-ministro português, isto é, quando se lembrava de que dispunha do monopólio de iniciativa, nunca resistiram muito tempo ao franzir de sobrancelhas dos Estados-membros. […] Na maior parte do tempo, recuava antes de sequer ter avançado”, escreveu, entre muitas outras coisas. Ou seja, três argileux, nada Durão. Mas talvez o diagnóstico mais certeiro tenha sido escrito a 12 de Setembro de 2013 no Süddeutsche Zeitung, depois do discurso de Barroso sobre o estado da União: “Defendeu as realizações da Comissão como se estivesse a ler uma lista de compras. No final do seu mandato, Barroso (…) pareceu, à imagem da Comissão a que preside, desencorajado e desinspirado. As fraquezas da Comissão Barroso não são todas culpa sua, mas também resultantes das circunstâncias a que a sua administração teve de fazer face. A Europa viveu a sua pior crise desde que foi criada (…). Mas mesmo quando Barroso foi responsável, não convenceu. Perdeu a oportunidade de fazer da sua instituição um poderoso contra-peso dos Estados-membros”.

Das realizações da Comissão Barroso, muitas por concluir, pode dizer-se com segurança que o seu lugar na história depende em muito do que (lhes) suceder no futuro. Dito de outra forma: já não dependem de Barroso.

Comecemos pelo Tratado de Lisboa, sequela do falhado Tratado Constitucional e em que a Comissão – não sendo o principal negociador, que são os Estados – teve um papel decisivo. Importa sublinhar que a mais importante crítica que ainda hoje é feita ao Tratado de Lisboa é ter contribuído para enfraquecer o papel da Comissão e o método comunitário, em prol da influência e peso crescentes do Conselho Europeu e de (alguns) Estados-membros. Destaquem-se ainda: a conclusão bem sucedida de 2 quadros financeiros plurianuais, sendo que no segundo (20014/20) e pela primeira vez, diminuíram os recursos postos à disposição da União; o crescimento de 15 para 28 membros em menos de 10 anos; a estratégia Europa 2020 para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo, com objectivos concretos a concretizar até àquele ano; e o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento. APT ou TTIP. Como referi acima, as consequências da maior parte destas realizações apenas se conhecerão totalmente dentro de alguns anos.

Barroso classificou o momento da entrega do Prémio Nobel da Paz à União Europeia como o mais emocional dos seus mandatos. E foi sem dúvida marcante e simbolicamente significativo do que é a União. Mas dificilmente lhe pode ser atribuída qualquer autoria ou protagonismo nos aspectos (repito, simbólicos) que justificaram a referida atribuição.

Invoca Barroso e com razão, que a Europa atravessou tempos difíceis, talvez a maior crise desde a sua criação. O contexto dos seus mandatos é obviamente muito desfavorável. Começou com a crise do Tratado Constitucional, em 2005; ultrapassada com a aprovação do Tratado de Lisboa em 2007, logo viu suceder-se-lhe a “tempestade perfeita”: a crise financeira global que se tornou a das dívidas soberanas dos Estados europeus mais endividados e da zona euro no seu todo. Com 28 países, a União demonstrou óbvias dificuldades para absorver tantos (e tão díspares) novos membros; cresceu exponencialmente o sentimento anti-europeu, xenófobo e das extremas; e surgiu já, finalmente, uma perigosíssima nova ameaça, a que chamaria a crise da fronteira, para já localizada na Ucrânia e que testa, de forma radical, os limites da expansão europeia (e da Nato), às portas da poderosa Federação Russa.

Crises a mais, problemas impossíveis de atender e de resolver por um homem só, mesmo que esse homem chefiasse uma instituição poderosa de dezenas de milhares de funcionários, legitimada perante o Parlamento Europeu e os cidadãos, dotada de um eficaz poder de iniciativa, ancorada na história da União e no método comunitário? Talvez, só talvez.

A principal acusação a Barroso é ter cedido aos poderes nacionais: não ter querido ou podido confrontar os países que, de um modo ou outro, ditaram as regras durante a crise, afirmando contra eles a autoridade da sua instituição. “Argileux”, afinal. Mas o agora ex-Presidente da Comissão usa um importante argumento para quem tem memória: a resiliência da União, a capacidade de resistir apesar de alturas em que tudo parecia ir soçobrar, quando as habituais pitonisas da desgraça já acenavam com o fim do euro, da União, da Europa. Com o apoio decisivo do Banco Central Europeu, é verdade. Mas sem a Comissão, sem a relação que muitos dizem tíbia com a Alemanha e a França (e que talvez fosse a possível), o pior cenário poderia ter-se confirmado. E quando Barroso ergueu a voz e falou alto em nome da Europa, muitos encolheram os ombros e desvalorizaram-no; aconteceu com França e a excepção cultural, com o Reino Unido e a imigração, até com a Alemanha ocasionalmente. Mas foi perante o Parlamento Europeu no discurso da União de 2011, que Barroso foi “três dur” e visionário:

“Tenho orgulho em ser europeu. E o orgulho de ser europeu não é só na nossa grande cultura, na nossa grande civilização, em tudo o que trouxemos ao mundo. Não é só o orgulho do passado, é no nosso futuro. É essa confiança que temos de recriar. Creio que é possível”.

Faça-se uma pausa, aguardemos o veredicto da História. Mas só o facto de um português, pelos cargos que desempenhou, estar em condições de se sujeitar a um julgamento a que só se sujeitam as personalidades que obtêm relevo global é um facto de que nos podemos orgulhar. Sem preconceitos, sem radicalismos, sem precipitação.

 

Professor da Universidade Católica — Instituto de Estudos Europeus