Estivesse Portugal na América Latina ou no leste da Europa e José Sócrates seria muito provavelmente candidato às próximas presidenciais. A cadeia de Évora transformar-se-ia na sua sede honorífica de campanha e o preso 44 ia ainda a tempo de se tornar no vigésimo Presidente da República Portuguesa. Blindado em Belém pelos poderes presidenciais o futuro parecer-lhe-ia um lugar seguro e cheio de oportunidades. Mas a Geografia não só conta como pode ser decisiva. E por isso um dos mais interessantes dilemas da nossa actualidade é sabermos se em Portugal, no século XXI, existe lugar para uma personagem como Sócrates, sobretudo para a personagem em que Sócrates se está a tornar.
Assim nos próximos meses a situação do antigo primeiro-ministro terá politicamente de se clarificar: ou Sócrates perde influência política e vai-se tornando numa personagem exótica mais adequada à Venezuela chavista ou à Argentina de Kirchner do que a um país da UE. Ou, pelo contrário, consegue impor-se, transformando o seu caso numa questão política e, dotado de uma linguagem contra o sistema, mobiliza os seus fiéis para uma alteração desse mesmo sistema, alteração essa feita à medida da sua vontade e sobretudo dos seus problemas.
Qualquer uma destas hipóteses passa em primeiro lugar pelo PS. Aliás já há algumas semanas que Sócrates centra toda a sua pressão sobre o PS. A recente ‘entrevista que não é uma entrevista’, tal como as cartas da prisão, não passam de peças desse medir de forças entre Sócrates e a liderança socialista. Sócrates, que foi mestre na capacidade política de acelerar o tempo e reproduzir o frenesi dos processos revolucionários – era sempre mais um facto, mais um acontecimento, mas uma causa, mais uma inauguração… –, está agora nas mãos do tempo dos outros: o tempo das investigações e o tempo da agenda de António Costa. Essa sim é a sua verdadeira prisão e é contra isso que escreve e protesta.
O que está em causa para Sócrates é sobretudo a necessidade de ir dizendo publica e notoriamente que o partido não se pode esquecer dele e não o pode deixar só nas mãos da justiça, entregue a esse tempo e a esses formalismos que o exasperam. Caso isso aconteça (ou Sócrates considere que tal está a acontecer, o que não é necessariamente a mesma coisa) o Largo do Rato tem de se preparar para o pior. Por exemplo, para uma divisão em torno do apoio à candidatura presidencial de António Guterres. No limite, Sócrates pode acentuar as clivagens dentro do próprio partido.
Ao querer transformar a sua prisão num caso político, Sócrates, muito mais que destruir o juiz Carlos Alexandre, pretende sim comprometer o PS com a sua defesa e destruir a estratégia de Costa de separar o Sócrates da justiça do Sócrates da política. Tudo foi e é política é o que dizem as cartas, as entrevistas, as mensagens que chegam de Évora. Isto é aquilo que Costa menos queria ouvir. Mas seja por carta, mensagem, entrevista que não é entrevista… os recados vão continuar a chegar ao Largo do Rato. Tal como nas missas da nossa infância não havia casamento, funeral ou baptizado em que São Paulo mais os seus recados aos coríntios não fossem evocados também nos próximos tempos não haverá no PS comunicação em que não paire a sombra de Sócrates.
Curiosamente este acentuar da deriva populista de Sócrates pode estar a funcionar como um bom serviço a Portugal. Afinal a reacção de Sócrates à sua detenção e em boa parte toda a sua actuação desde o início do seu segundo mandato, levaram a que o antigo primeiro-ministro ocupasse com estrépito o espaço da demagogia geralmente ocupado pelos radicais. E por via dessa deslocação do populismo para o centro podemos estar a ser poupados ao desgaste resultante da actividade de partidos extremistas como o Podemos ou o Syriza.
Sócrates trouxe as técnicas dos radicais para o centro. Afinal quem em Portugal senão Sócrates levou e leva ainda ao limite o discurso do desconcerto praticado habitualmente pelos líderes dos partidos radicais na Europa? Quem melhor do que Sócrates procurou nos últimos anos subverter as regras de funcionamento das instituições democráticas enquanto usava e abusava de todos os garantismos da democracia?
Só que com Sócrates, e ao que contrário do que acontece com os líderes desses partidos radicais, o objecto do discurso populista não é a economia ou a política mas sim, como é característico da América Latina, o próprio líder. O que faz, o que fez. O que disse: é a entrevista que não é uma entrevista mais a luta pela liberdade de expressão. O empréstimo que não é um empréstimo mas sim um acto de generosidade entre gente solidária. A casa de luxo em Paris que afinal não é de luxo ou que sendo de luxo não era dele… E sempre aquela milícia de mão na anca a justificar o injustificável mas que se vissem os mesmos actos a ser praticado por outros logo exigiriam que rolassem cabeças. Qualquer semelhança com a Argentina não é coincidência.
Sócrates precisa de falar para mostrar que existe e que mantém poder de influência. Quando já tiver dado entrevistas que não são entrevistas a todas as televisões, rádios e jornais passará para qualquer outra coisa que mantenha o seu nome nas primeiras páginas. No dia em que sair dos grandes títulos Sócrates sabe que já perdeu. Não na guerra que mantém com a justiça mas sim na que trava pela sua sobrevivência política. Mais do que a prisão o que lhe é intolerável é tornar-se politicamente dispensável. Isso nunca esteve nem está nos seus planos.