Foi divulgado um manifesto que defende a legalização da eutanásia (eufemisticamente designada como morte assistida, sendo certo que não é certamente a assistência aos moribundos que está em causa). Invoca tal manifesto os direitos de autonomia, liberdade religiosa, liberdade de convicção e consciência, sustentando que a Constituição portuguesa consagra a vida como um direito, não como dever irrenunciável. A eutanásia será, de acordo com tal manifesto, um ato compassivo e de benevolência, que põe termo a um sofrimento inútil e sem sentido.

A este manifesto, respondo assim:

Não é lógico contrapor o valor da vida humana ao valor da autonomia. É que a autonomia supõe a vida. A vida é um bem indisponível, o pressuposto de todos os outros bens terrenos e de todos os direitos. A eutanásia e o suicídio não representam um exercício de liberdade, mas a supressão da própria raiz da liberdade. Não trazem consigo nenhum benefício, mas eliminam o próprio beneficiário. É absurdo falar em “direito à morte” (como seria absurdo falar em “direito à doença”), porque o direito tem sempre por objeto um bem na perspetiva da realização humana pessoal, e a morte não é nunca, em si mesma, um bem, pois todos os bens terrenos pressupõem a vida, e nunca a morte. O “direito à morte” seria ainda mais contraditório do que uma escravidão legitimada pelo consentimento da vítima. A liberdade não pode servir para se anular a si própria. Até Stuart Mill rejeitava a renúncia à liberdade em nome da liberdade: «o princípio de liberdade não pode exigir que se seja livre de deixar de o ser».

A Constituição portuguesa, mais do que consagrar o direito à vida, consagra a inviolabilidade da vida humana como um princípio e um valor objetivos (artigo 24º, nº 1: A vida humana é inviolável), de onde decorre a indisponibilidade desse direito (a vida humana é inviolável até com o consentimento do seu titular). O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, desde o caso Pretty v. Reino Unido, nunca fez decorrer do direito à vida ou à autonomia um pretenso direito a morrer. Nem o fez o Supremo Tribunal norte-americano.

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Por outro lado, nunca é absolutamente seguro que se respeita a vontade autêntica de uma pessoa que pede a eutanásia. Nunca pode haver a garantia absoluta de que o pedido de eutanásia é verdadeiramente livre, inequívoco e irreversível. Muitas vezes, traduz um estado de espírito momentâneo, que pode ser superado. Em fases terminais sucedem-se esses momentos de desespero e outros de apego à vida. Não poderia a pessoa vir a arrepender-se mais tarde (como se arrependem a maior parte dos que tentam o suicídio)?

É que a decisão de suprimir uma vida é a mais absolutamente irreversível de quaisquer decisões, dela nunca pode voltar-se atrás. Que certeza pode haver de que o pedido de morte é bem interpretado, não será ambivalente, talvez mais expressão de uma vontade de viver de outro modo (sem o sofrimento, a solidão ou a falta de amor experimentados) do que de morrer? Ou de que não é consequência de estados depressivos passíveis de tratamento? Estando em jogo a vida ou a morte, a mínima dúvida a este respeito seria suficiente para optar pela vida (in dubio pro vitae). E poderá estar alguma vez afastada essa mínima dúvida?

Justificar a supressão da vida em nome da autonomia conduziria, até, mais longe do que à legalização da eutanásia, conduziria à licitude do homicídio a pedido e do auxílio ao suicídio, condutas que vêm sendo criminalizadas em todas as ordens jurídicas. Pretende-se apenas (para já?), no entanto, reconhecer a licitude da supressão da vida, quando consentida, em situações de sofrimento intolerável ou em fases terminais.

Atinge-se, desta forma, o princípio de que a vida humana tem sempre a mesma dignidade, em todas as suas fases e independentemente das condições externas que a rodeiam. A dignidade da vida humana deixa de ser uma qualidade intrínseca, passa a variar em grau e a depender de alguma dessas condições externas. Uma proposta de recomendação em tempos apresentada no Parlamento Europeu referia expressamente as situações em que «a vida perde dignidade» como aquelas em que se justificaria a eutanásia.

Dir-se-á que, com a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, não se toma partido nesse sentido e se respeita, apenas, a vontade e as conceções, sobre o sentido da vida e da morte, de quem solicita tais pedidos. Mas não é assim. O Estado e a ordem jurídica, ao autorizarem tal prática, dando-lhes o seu beneplácito, estão a tomar partido, estão a confirmar que a vida permeada pelo sofrimento, ou em situações de total dependência dos outros, deixa de ter sentido e perde dignidade (pois só nessa situações seria lícito suprimi-la).

Esta “mensagem” cultural não pode deixar de ter efeitos no modo como toda a sociedade passará a encarar a doença e o sofrimento. Resposta a estas situações passa a ser, já não um esforço solidário de combate à doença e ao sofrimento, mas uma resposta mais fácil e descomprometida, a supressão da própria pessoa doente e sofredora, pretensamente diminuída na sua dignidade. Até aqui, a doença e o sofrimento não têm sido encaradas como algo que diminui a pessoa na sua dignidade, mas antes como um motivo de reforço do amor e da solidariedade para com ela. Neste novo contexto cultural, esse amor e essa solidariedade deixarão de ser tão encorajados, como já têm alertado associações de pessoas que sofrem das doenças em questão (e que se sentem, obviamente, ofendidas quando vêm que a morte é apresentada como “solução” para os seus problemas). E também é natural que, como muitas vezes tem sido salientado, haja doentes, de modo particular os mais pobres e débeis, que se sintam socialmente pressionados a requerer a eutanásia, porque se sentem “a mais” ou “um peso”. Tudo isto se revela particularmente perigoso num contexto de envelhecimento da população e de restrições nas despesas com cuidados de saúde. Com o risco de cedência à cultura do descartável, no que aos doentes e idosos diz respeito.

Não se elimina o sofrimento com a morte, com a morte elimina-se a pessoa que sofre. O sofrimento pode ser eliminado ou debelado com os cuidados paliativos, não com a morte. E quando não é possível eliminar completamente o sofrimento do doente, a presença fraterna e solidária dos outros deve ajudar a descobrir um sentido para esse sofrimento. Porque nunca é possível eliminar em absoluto o sofrimento físico, psicológico e espiritual, mas isso acontece em qualquer fase da vida. E a morte nunca pode ser a resposta para esta realidade.

Juiz e vogal da Comissão Nacional Justiça e Paz