No meio das desgraças e venturas do mundo, e das várias amostras de loucura que os dias trazem, há certas coisas que se constroem e são feitas para durar, servindo para nos dar prazer e para, na medida do possível, nos proteger daquela parte da banalidade que ofende e agride. A poesia de Herberto Helder é uma dessas coisas.

A poesia não deixa as palavras intactas, ou quando as deixa é má poesia ou poesia nenhuma. E certamente que a poesia de Herberto Helder, sendo grande poesia, nada deixa intacto. Desorganiza, porque o caos é necessário para a criação, e a partir dessa desorganização surge um organismo composto por sentidos transformados e como que magicamente coerentes entre si, onde, no entanto, se encontra sempre, presente e não recalcado, o caos inicial, espécie de advertência da vida. A grande poesia não se pode dar ao luxo da gentileza, e a poesia de Herberto Helder é tudo menos uma poesia da gentileza, exceptuando aquela gentileza feroz que olha de frente a vida do enigma e procura – e consegue – dar forma a um espanto informe.

Em Cobra:

Não ames roupas, azáleas, água cortada, louça,
― a leveza. Ama ― digo ―
o que é carregado: as frutas, ou a noite
e o calor, e os negros laços atados
dos animais.

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Há uma coisa em Herberto Helder que é comum a toda a grande poesia. É a criação apresentar uma espécie de necessidade própria onde o lugar para o arbitrário é mínimo. O que se chama “estilo” é um bom bocado isso: uma organização não redundante do aleatório, como lembrou um filósofo. E uma organização que, no caso da poesia, se faz através de uma série de operações sobre o sentido comum das palavras da tribo. Se a expressão “trabalho poético” pode ser utilizada é exactamente por relação a isto, por relação ao modo como se procede à transformação do sentido das palavras. Se lermos um poema onde a palavra “mar” nada significar senão a costumeira ideia de mar, podemos ter a certeza de que é um mau poema. Em Herberto Helder isso nunca acontece. Há sempre operações sobre as palavras. A palavra ”casa”, por exemplo, logo no primeiro poema do seu primeiro livro, A colher na boca.

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama,
de doces mãos irreprimíveis.
– Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil, rodeada em cima pela treva das palavras.

Perceber a poesia de um poeta é, pelo menos idealmente, capturar as operações que ele executa sobre o sentido comum. Nos maus poetas, isso é relativamente fácil. Elas estão, por assim dizer, à vista. Por isso, a imitação faz-se sem problemas. Nos grandes poetas, ela tende para o impossível, ou então é insuportavelmente trôpega. Um caso paradigmático é Emily Dickinson. Não há andaimes que nos ajudem a perceber como aquilo se faz, ou se os há eles são apenas aparentes, pertencendo realmente à forma interna daquela poesia, e o trambolhão é fatal. Essa impossibilidade de imitar valiosamente aquilo que mais apeteceria imitar é quase um sinal indubitável da soberana realidade de uma poesia. Caem-nos os braços. “Como é possível fazer isto?”

Há muitos bons poemas escritos em português depois de Pessoa. Há um de que me lembrarei sempre, “O ciclópico acto”, de Luiza Neto Jorge, o maior poema erótico (se é que a expressão faz sentido) da poesia portuguesa da segunda metade do século XX:

Inicia-se, portanto, o cicló-
pico acto.

Mas há, obviamente, vária outra muito boa poesia. O’Neill vem logo ao espírito. O que faz a singularidade de Herberto Helder é o ele ter praticamente publicado só grande poesia. O que isso revela sobre o seu acerto crítico, resultado sem dúvida do profundo conhecimento que ele tinha das operações poéticas que tinha inventado, é enorme. Não há um só poema dele que nos permita uma ocasional distracção. Nisso só houve, no século XX português, alguém de comparável: Pessoa, é claro. Também a poesia de Pessoa é inteiramente construida por operações sobre o sentido primeiro das palavras, que as transformam e as tornam num objecto de contemplação novo e inesperado. Logo desde as primeiras linhas da Ode à noite, por exemplo, a palavra “noite” já não é a noite do sentido comum. Pessoa, é claro, através dos heterónimos, produziu diferentes tipos de transformações: as de Caeiro não são as de Campos, nem as de Campos as de Ricardo Reis, ou estas as do próprio Pessoa. E também Pessoa, como Herberto Helder, era dotado de um juízo crítico perfeitamente acertado sobre o valor daquilo que escrevia. Prova-o o que publicou em vida.

Numa coisa, é certo, Herberto Helder terá mais sorte do que Pessoa. Não verá a sua obra ganhar maior celebridade através de algo menor, como aconteceu a Pessoa com o Livro do desassossego, de Bernardo Soares, que é quase um epígono que Pessoa ele próprio criou para si mesmo (o exacto contrário, portanto, de um heterónimo). Dado o gosto generalizado pelo epigonal, não admira o sucesso obtido junto do público, à cata de consolos poéticos em prosa que o façam sentir-se inteligente. A Herberto Helder, queira Deus, isso nunca acontecerá.