A incomensurabilidade é um conceito importante em ciência e filosofia. Diz-nos que não se podem comparar ou somar de alguma forma coisas que são qualitativamente diferentes. Mas em política, a julgar pelos nossos políticos e comentadores, tudo é comparável e todas as diferenças são encaixáveis numa qualquer bitola comum.
A primeira vez que senti um forte desconforto com esta tendência para comparar coisas que na minha modesta opinião são incomparáveis, foi há muitos anos, quando via o Professor Marcelo Rebelo de Sousa dar notas aos políticos. Ficava abismada e irritada quando ele dava, por exemplo, um catorze a Álvaro Cunhal e um quinze a Cavaco Silva ou a Mário Soares, ou vice-versa, e nunca consegui livrar-me da má impressão que tal espectáculo me causava. Não pelo valor das notas em si, mas pelo facto de ele por no mesmo plano realidades (no caso, pessoas) que não tinham nada de comum entre si. E achava profundamente deseducativo e indutor de erro tal perspectiva, para mais divulgada amplamente numa televisão generalista.
Ao longo do tempo fui tendo em diversas ocasiões a mesma sensação de desconforto, e ainda bastante recentemente isso aconteceu quando ouvi de vários comentadores políticos de diversos quadrantes elogios à actuação de Mariana Mortágua na Comissão de Inquérito ao caso BES. Como se qualquer posição expressa por um qualquer político pudesse ser descontextualizada do resto das suas posições e avaliada isoladamente.
Volto a sentir o mesmo desconforto no momento actual com a aparente facilidade com que se admite constituir uma maioria de esquerda para governar, somando os votos dos respectivos partidos. Não me estou a referir aos dirigentes partidários dos partidos em questão, porque esses não me surpreendem quando tentam chegar ao poder de qualquer maneira. Isso só mostra que nos últimos quatro anos alguma coisa foi feita para mudar Portugal, e é isso que eles querem travar.
Refiro-me a alguns comentadores e a gente comum. Somar os votos de partidos diferentes após as eleições pode ser legítimo ou não. No caso de partidos relativamente próximos em termos de matriz ideológica, cultural, ética e de tradição não vejo nenhum problema com isso. Já quando se trata de partidos com uma matriz substancialmente diferente e que ao longo da sua história estiveram frequentemente em barricadas opostas, como é o caso dos três partidos da esquerda portuguesa actual, a minha opinião é outra.
Aquilo que separa partidos da social-democracia europeia, como o Partido Socialista, dos partidos de matriz marxista-leninista ou comunista, é muito profundo, ou, pelo menos, julgava eu que era. É toda uma história e uma postura cultural, ética, de valores básicos sobre a organização económica, social e política da sociedade que estão em causa. É impossível que não haja muitos eleitores socialistas a sentirem-se desconfortáveis com a actual aparentemente fácil aproximação entre o PS e o PCP e BE.
Os votos destes três partidos não são, nunca foram e não serão adicionáveis, pelo menos, num futuro próximo, ou eu estou muito enganada. Seria muito mau sinal se um processo desses acontecesse de forma linear, sem muitas curvas e contra-curvas, sem voltas e reviravoltas.
O PS carrega, talvez mais do que qualquer outro partido em Portugal, espero eu, a menos que tenha sofrido alguma forma de amnésia colectiva, o que foi a nossa história e a história da Europa do último século, e em particular dos últimos quarenta anos, com todos os seus conflitos, alguns deles profundos e violentos. E para além disso, tem muitos militantes provenientes do PC, o que neste aspecto pode ser uma faca de dois gumes. Estes factos não podem deixar de dotar o PS com o lastro de complexidade íntima que lhe permita resistir a algum dirigente menos avisado e mais simplista como parece ser o caso de António Costa.
Terá passado pela cabeça de António Costa que a aproximação do PS à esquerda poderia ser um processo simples, linear, com resultados rápidos, para aplicação imediata e sem consequências de maior para o seu partido? Se for isso que vier a acontecer, é um muito mau sinal de degradação da vida pública portuguesa.