A cooperação é ubíqua na natureza e é considerada hoje uma característica central da matéria viva. Todas as células, todos os organismos multicelulares são associações cooperativas. Um ser humano é um sistema simbiótico que inclui uma multidão de células microbianas, sem as quais o todo seria disfuncional e não viável. Caminha-se mesmo no sentido de considerar que as comunidades de microorganismos que vivem connosco são parte integrante de nós próprios. Do ponto de vista da evolução, estas simbioses são a norma porque são altamente adaptativas e robustas contra perturbações ambienciais. Nas ciências da vida, não estamos mais no mundo darwiniano com a sua imagem dominante de competição e de luta pela sobrevivência entre indivíduos isolados. Isso é apenas um aspecto muito parcial do processo da evolução. A imagem dominante no mundo da ciência actual é a da co-evolução.

Vem isto a propósito do que se tem passado na sociedade portuguesa, em particular na sua vida política mais recente. Porque existem verdadeiras homologias entre o que acontece ao nível dum organismo biológico e ao nível das sociedades humanas. As sociedades que melhor compreenderem a importância da cooperação entre as principais forças sociais e políticas, que melhor souberem identificar e unir-se em torno de objectivos que verdadeiramente sirvam o interesse comum, serão aquelas que mais possibilidades terão de se desenvolverem e afirmarem no mundo de hoje. Ao mesmo tempo, as que continuarem a digladiar-se, a desenvolverem conflitos permanentes dentro de si próprias em redor de tudo e nada, com uns a fazer e outros logo a seguir a desfazer aquilo que foi feito, estarão condenadas à estagnação e à pobreza.

O espectáculo que temos estado a assistir nas últimas semanas de sucessivas revogações de medidas muito recentes não é edificante e é significativo da ausência de diálogo e cooperação entre as várias forças políticas. Mostra o grau de irresponsabilidade dos nossos políticos que provavelmente acham natural isto de fazer e desfazer. Ainda por cima, muitas destas revogações estão a ser feitas sem sequer se achar necessário prestar qualquer explicação ou justificação para a sua necessidade. O mínimo de respeito para com o povo e de noção de serviço público deveria levar os políticos de todos os quadrantes a terem alguma contenção, e a procurarem arduamente consensos que permitissem alguma estabilidade, pelo menos nas medidas mais importantes menos nas medidas mais importantes, de modo a que a revogação das medidas de um qualquer governo pelo seguinte fosse a excepção e não a regra. E quando esse consenso não fosse possível, que ficassem claras quais as razões e quais os responsáveis. Ao fim de 40 anos de democracia o natural seria esperar que já existissem consensos significativos sobre muitas áreas da governação.

Uma das vantagens da democracia é que, para o bem e para o mal, abre uma porta à cooperação. Mas apenas abre uma porta que pode ser transposta ou não. A democracia não significa automaticamente cooperação. Bem pelo contrário, como muitos exemplos de democracias formais no mundo actual demonstram. Para haver cooperação entre as diversas forças políticas e sociais, para além de trabalho árduo, é necessária uma tradição cultural enraizada que passa por coisas aparentemente simples como o bom senso, o respeito pela liberdade individual e um forte debate de ideias, mas também passa por aspectos mais sofisticados da cultura de um povo, como a forte tradição organicista e anti-racionalista da cultura alemã, por exemplo, exemplifica.

Não é o espírito de cooperação que reina em Portugal em geral, e muito em particular nas forças de esquerda, o que é um sintoma de arcaísmo cultural. Uma das características da nossa esquerda é o seu sectarismo e a sua incapacidade de pensar no interesse geral, no país no seu conjunto. São muitas as manifestações deste sectarismo, como, por exemplo, a atitude permanentemente confrontacional da esquerda face à direita (ou à chamada “direita”) nos últimos anos, ou a raridade com que se vê a esquerda apoiar qualquer ideia proveniente da direita, mesmo que depois vá fazer coisas muito semelhantes, ou a contínua desculpabilização ou não assumpção dos erros próprios em contraponto com o ataque feroz contra erros alheios, mesmo que de menor gravidade.

A cultura da esquerda tem essencialmente a ver com controlo e poder. E o controlo destrói a possibilidade de cooperação. Não é por acaso que um organismo biológico funciona sem qualquer controlo central. As raízes deste sectarismo da esquerda estão nas suas origens ideológicas e culturais. Marx, contemporâneo de Darwin, defendeu a luta de classes e a supremacia do proletariado. Mas tendo sido, como foi, um homem do seu tempo, conhecedor dos avanços da ciência e da filosofia, é de supor que, se fosse hoje vivo, estaria a defender a procura activa e incessante de objectivos consensuais e a cooperação em torno deles dos diferentes estratos de uma sociedade. A esquerda portuguesa, ou pelo menos uma parte significativa dela, permanece parada nos ideais novecentistas do confronto de classes e do controlo do poder a qualquer preço.

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