À altura em que escrevo, não se sabe ainda o nome do terrorista que ontem matou três pessoas (haverá já mais mortos?) e fez, parece, quarenta feridos em Londres. O que se sabe de certeza certa é que o canibalismo islamista voltou a atacar. É algo que já conhecemos bem. Como conhecemos bem o que vem a seguir: a exibição ritual de uma piedade genérica e os avisos contra a ameaça da “deriva islamofóbica”. Aliás, ainda na manhã do próprio dia do atentado se podiam ler condenações veementes da adopção pela Inglaterra de políticas semelhantes às de Trump (não há idiota que não veja nele o fim do mundo) relativas a restrições em viagens de avião a pessoas que viessem de certos países muçulmanos onde o terror islamista tem viveiros muito bem estabelecidos. Interessa muito mais pensar sobre isto, mesmo a quente, do que emitir em doses maciças eflúvios de bons sentimentos sem consequências práticas de ordem alguma.

É inútil lembrar que “fobia” vem da palavra grega que significa “medo” e que o medo não é propriamente uma emoção disparatada nestes casos. Mas talvez não seja despiciendo recordar que o dever de compaixão pelos refugiados vindos daquelas terras às quais as restrições se aplicam e de algumas outras não nos deve fazer esquecer um facto crucial. Mesmo que a esmagadora maioria dos imigrantes seja insusceptível de se converter ao islamismo radical, algo em que quero crer, que dizer da segunda ou terceira geração? As vozes que se levantam, do fundo de uma piedade universal, contra as políticas restritivas em matéria de imigração apressam-se logo a lembrar que boa parte dos terroristas são nativos dos países (Inglaterra, França, e por aí adiante) onde praticam os atentados. Esquecem-se que esses nativos pertencem geralmente a essas gerações.

Há aqui uma ignorância vasta sobre um fenómeno essencial que os costumes contemporâneos fazem tudo para recalcar. As pessoas transportam sempre consigo a sua cultura, os costumes e as concepções do mundo que as formaram. Nada de mal, é claro, nisso. A diversidade é mesmo um valor a prezar e o que um filósofo chamava a “hospitalidade universal” é um bem. Acontece que, infelizmente, não há, contrariamente ao que pretende a sabedoria mediática, nenhuma harmonia pré-estabelecida entre as várias culturas. E que certos aspectos de uma cultura, como, por exemplo, a igualdade, mesmo que tendencial e imperfeita, de direitos entre as mulheres e os homens, característica da nossa, são rebarbativos ao mais extremo para membros de outras culturas e que isso pode, com uma possibilidade a aproximar-se da certeza, manifestar-se um dia da mais violenta e explosiva das formas. Estou a ser “racista”? Obviamente que não estou nada. Se me é permitido manifestar a extensão dos meus bons sentimentos, o racismo é para mim o pecado humano por excelência. Estou apenas a apontar um facto que tem toda a aparência, as meus olhos, do indisputável, e que é muito conveniente ter em conta.

Infelizmente, isso não será tido em conta nas opiniões esclarecidas que hoje, e nos dias que se seguem, se lerão e ouvirão. Aposto com toda a certeza de ganhar a aposta que o que mais se ouvirá e lerá consistirá na denúncia do facto de este atentado, e dos outros todos, favorecer Marine Le Pen e outra gente assim. Certamente que favorece. No entanto, não simpatizando em nada com Marine Le Pen, lamento ter de dizer que o horror essencial da coisa não reside nisso mas no próprio atentado, naqueles que o antecederam e naqueles que fatalmente virão a seguir. Diz-se que o islamismo radical quer destruir o nosso modo de vida. Em parte é verdade, é claro, mas o que ele quer mais imediatamente é mesmo matar-nos. Marine Le Pen quererá eventualmente mudar o nosso modo de viver, o que é sem dúvida péssimo e se deve combater, mas raia o delirante detectarmos nela as pulsões homicidas do islamismo radical. A simplicidade deste raciocínio ofenderá certamente muita gente. Não é coisa que me incomode muito. E até acrescento que perceber isto, e daí tirar lições para a acção, é provavelmente a melhor maneira de vencer Marine Le Pen e quem faz política como ela.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas não creio, mais uma vez, que esta sóbria consideração corra o risco de ser partilhada por muita gente, o que revela o triste estado de infantilidade em que nos encontramos. Em Portugal, por exemplo. E não me refiro ao facto grave de, com infalível regularidade, o Bloco de Esquerda e o PCP, esses indispensáveis pilares do nosso Governo, terem, aquando dos prévios atentados, emitido comunicados em que, denunciando as carnificinas, arranjaram sempre maneira de apontar que, em última análise, somos nós, são as nossas políticas, da política externa ao urbanismo (o próprio António Costa, se bem me lembro, muito se preocupou com este último aspecto), que devemos tomar como responsáveis últimos pelo terror. O terrorismo seria apenas um fenómeno de pura reactividade ao nosso egoísmo e ao nosso desmazelo. Hoje e nos dias seguintes muitas vozes apontarão o dedo a Donald Trump. Mais uma vez: vale uma aposta?

A triste situação em que vivemos é, no entanto, mais vasta do que isto. E ela reside na grossa irrealidade e infantilidade em que vivemos, na desatenção militante ao que faz o mundo e na preferência pela residência num universo alternativo. Dou um exemplo que, mais uma vez, não cairá sem dúvida bem e que aos olhos de muitos aparecerá como uma amálgama típica da “direita radical” que, ao que se diz, anda malvadamente por aí: as reacções maciças a umas declarações do senhor Dijsselbloem, presidente do “Eurogrupo”, reacções particularmente fortes em Portugal.

Passo por cima do facto de alguns dos indignados (não vale a pena citar nomes) nunca se terem distinguido por uma excessiva contenção verbal. Isso é o menos. Mas essas reacções revelam muito sobre a curiosa relação com a linguagem vigente nos tempos que correm. Nalguns casos por oportunismo, noutros por pura e simples falta de imaginação, o metafórico, ou o uso de analogias (“gastar dinheiro com mulheres e álcool”, no caso), deixou de possuir a tradicional tolerância de que gozava. Dantes, poder-se-ia censurar eventualmente o mau gosto de certas fórmulas. Hoje, elas aparecem imediatamente como crimes contra a humanidade. António Costa, por exemplo, usando do catálogo generosamente fornecido por estes tristes tempos, não perdeu um segundo em acusar Dijsselbloem de “sexismo, xenofobia e racismo”. Os jornais dizem que ele o “arrasou”: por mim, limitou-se a ser grotesco. Que o que Dijsselbloem tenha dito, por detrás da comparação, que aqui não estou a aplaudir, fosse susceptível de consideração (do meu ponto de vista disse coisas parcialmente acertadas), não interessa para nada.

A nova política das palavras tem a virtude de eclipsar as ideias que nos põem em causa. O Bloco de Esquerda falou imediatamente de uma “política do ódio”. (Será tão forte na condenação do atentado de Londres?) Essa nova política das palavras, que abusa da ininteligência da linguagem é, como hoje em dia se diz, “transversal” aos partidos políticos. O CDS e o PSD não quiseram ficar atrás, e toda a gente aproveitou para levar de novo à cena o momento Finis patriae de Guerra Junqueiro. Só que desta vez não se sonhou com lordes cortados às postas no Tamisa (ontem houve outros problemas por lá) mas com um holandês amarrado a um dique. A inferioridade, essa, continuou imperturbável e tristemente perene. Como a infantilidade se continua igualmente a aguentar bem. Testemunha disso a criação, pelo Governo, de um site dedicado à reunião de testemunhos de felicidade por parte dos portugueses. O emprendimento inspira-se convenientemente do precedente do Butão, e a ideia deve ter surgido ao som do “Reino do Dragão do Trovão”, o hino local daquele bem-aventurado país. A escolha foi sem dúvida feita para agradar ao Bloco e ao PC, porque o Butão é uma das mais pobres economias do mundo e um dos países menos visitados do planeta.

Com as consequências disto temos nós, portugueses, todos de aguentar. Por mim, já me ando a preparar mentalmente para a catástrofe que aí vem. Desgraçadamente, isso não é o pior. O pior, muito enfaticamente, e que justifica a menção às últimas desventuras pátrias, é que doses tão cavalares de irrealidade e infantilidade nos tornam inermes para reagir aos mais graves perigos de que o atentado de Londres foi o último exemplo. Como é que gente educada assim, formada para a irrealidade, se encontra preparada para ver no terrorismo islâmico aquilo que ele é e para prever a sua extensão nos tempos que vêm? Verdade seja dita, Costa e os seus estão obviamente muito longe de qualquer responsabilidade exclusiva, ou sequer maior, nesta matéria. Por essa Europa fora, embalamo-nos todos ao som dessa canção. A seguir ao último atentado de Berlim, grupos juntaram-se, de velinhas acesas, a entoarem We are the children. E, mentalmente, eram. E, mentalmente, somos. Pelos caminhos da irrealidade assim ficámos.