Faz depois de amanhã vinte anos que ocorreram os atentados do 11 de Setembro de 2001, onde morreram quase 3000 pessoas. O aniversário coincide praticamente com dois outros acontecimentos: a catastrófica retirada das tropas americanas (que arrastou consigo a saída das outras) do Afeganistão, e o resultante retorno ao poder, vinte anos passados, dos talibãs; e a abertura do processo dos atentados, por elementos do grupo Estado Islâmico, de 13 de Novembro de 2015, no clube Bataclan e no Stade de France, em Paris (130 mortos).

É um aniversário que me traz, como a toda a gente, memórias pessoais. Primeiro, é claro, do horror dos próprios atentados. E, a seguir, do horror renovado face a muitas reacções aos atentados, que se podem resumir na frase, muitas vezes ouvida, que os americanos “estavam a pedi-las”, they had it coming. Poucas épocas da minha vida foram tão pessoalmente dilacerantes. Felizmente, se é que pode haver alguma felicidade nestas coisas, experimentei um entendimento perfeito nesta matéria com Fernando Gil, que dirigira a minha tese de doutoramento, e escrevemos juntos um livro, Impasses, sobre o mundo criado pelo 11 de Setembro, tal como o víamos. Muitas vezes me pergunto o que Fernando Gil, que morreu em 2006, pensaria sobre o mundo de hoje. Mas sobre o mundo de 2003 sei muito bem o que ele pensava.

O livro lidava com as reacções ao 11 de Setembro, e, no prolongamento delas – porque há aqui continuidade, apesar da lenda que nos diz o contrário –, às guerras do Afeganistão e do Iraque. A reacção às guerras podia-se já ler nas palavras, a quente, de muita gente naquele dia entre todos inesperado. O que dizia o livro? Que o integrismo islâmico representava uma ameaça a um modo de vida que não nos custava nada designar por “ocidental”, um modo de vida pelo qual valia a pena lutar. Que, mesmo numa situação de incerteza quanto às guerras, a convicção das virtudes desse modo de viver justificava amplamente que se denunciasse o ressentimento anti-ocidental, movido pela má-fé e tendo por corolário o niilismo, que por todo o lado era observável. Que esse niilismo era uma forma de ódio à democracia, de que a detestação de Israel e dos Estados Unidos era um exemplo maior. E que o entusiasmo negativo na denúncia de uma espécie de culpa generalizada do Ocidente prenunciava o pior.

Pela minha parte, e tendo em conta o que se passou de então para cá, nada de substancial mudaria no livro. É verdade que o terror do integrismo islâmico perdeu, com algumas excepções, a sua dimensão mais espectacular, mas continua vivíssimo, e vamos ver o que sucede com o Afeganistão entregue aos talibãs. Em contrapartida, o ressentimento anti-ocidental, e o seu concomitante niilismo, atingiu proporções inéditas, desta vez geradas pela esquerda universitária dos próprios Estados Unidos, que rapidamente alastraram pelo mundo. O movimento woke, na ânsia de denunciar a perversa história do Ocidente, dá a mão ao “islamo-esquerdismo”, particularmente virulento em França, com o seu necessário complemento antissemita.

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Wokeness e integrismo islâmico, com as suas origens e histórias bem distintas, são as Cila e Caribdis entre as quais navegamos perigosamente. No primeiro caso, trata-se de uma exorbitação da tradição reflexiva e crítica que habita o Ocidente desde a invenção da democracia pelos gregos, do seu acolhimento pela tradução judaico-cristã e da visão global do Iluminismo. No segundo, de uma recusa inteira e militante dessa tradição. Que o hiper-criticismo e a hiper-reflexividade se encontrem finalmente em paz com a recusa intransigente da crítica e da reflexividade não tem, bem vistas as coisas, que nos surpreender grandemente. Se há lugar-comum que goza de indisputável verosimilhança é aquele que nos diz que os extremos se tocam.

E tocam-se, como se sabe, num ponto preciso, a partir do qual irradia o fanatismo: o da alucinação de uma culpa única e inexpiável do Ocidente. O catálogo das culpas que o movimento woke elabora é tendencialmente infinito e, pela sua própria natureza, não conhece princípio algum de autolimitação. A lista das conquistas de Don Giovanni que Leporello enumera a Dona Elvira na ópera de Mozart – Ma in Ispagna son già mille e tre – é uma brincadeira de menino de coro comparada com o rol das culpas ocidentais que o donjuanismo woke conquista. O movimento woke é declaradamente centrípeto, progride por uma devastação progressiva e avassaladora das mínimas coisas do quotidiano, numa caça absoluta e irreprimível. O número de “micro-agressões” que militantemente detecta, num exercício de libertinagem puritana desenfreada, não tem fim.

Por sua vez, o integrismo islâmico é habitado por uma força centrífuga e expansiva. A culpa ocidental é única e maciça: a culpa da impiedade. É a tradição ocidental, construída na crítica e na reflexão, que tem que ser abolida como um todo. Para continuar com Mozart – desta vez o Mozart do Rapto no serralho –, é a nossa liberdade que lhe é incompreensível, como é incompreensível ao intendente Osmin a liberdade de Blonde, que memoravelmente lhe responde: “As mulheres não são mercadorias que se oferecem! Sou inglesa, nascida para a liberdade, e desafio quem quer que seja a dominar-me” (antes, no segundo acto de Zaide, na incontida fúria da magnífica ária “Tiger! wetze nur die Klauen”, sentimentos afins eram já expressos – aconselho toda a gente a vê-la cantada por Patricia Petitbon no YouTube). E, hoje em dia, nada menos imaginável no integrismo islâmico do que a tolerância final do Pacha Selim, que o iluminista Mozart podia ainda conceber.

Moral da história. Vinte anos depois, o perigo em que vivemos pôde ser controlado em parte, mas a todo o momento vai ressurgindo, e é bem possível que, num futuro próximo, ressurja com uma força inédita. Até porque as nossas defesas se encontram intelectualmente diminuídas pela alucinação da nossa imorredoira e muito exclusiva culpa dos males do mundo a partir de tempos imemoriais.

Mas pode ser que, de facto algo mude. Em Vinte anos depois, de Alexandre Dumas, os personagens desse grande livro sobre a amizade que é Os três mosqueteiros (que, como se sabe, eram quatro) voltam a encontrar-se. Por causa da Fronda, encontram-se divididos: Athos e Aramis, de um lado; D’Artagnan e Porthos, do outro. Mas, no decurso do livro, a velha amizade ressurge. Neste momento de confronto a propósito da saída das tropas americanas do Afeganistão, em que “realistas” e “idealistas” se opõem, pode ser que a amizade, também aqui, ressurja. Com uma pequena ajuda. Não, infelizmente, dos nossos amigos, mas dos talibãs e do integrismo islâmico. Se disser que receio o pior, contra o que os “especialistas”, na sua vasta sapiência, nos garantem, não minto.