Lá no fundo da infância, ainda havia vagos encantos em ficarmos doentes, se a coisa não fosse excessivamente grave. Faltar às aulas, um prazer que merece sempre a pena ser lembrado, atenção maior dos pais, com sorte uma prenda ou outra e coisas do género. Com a idade, esses encantos perdem-se em absoluto, ou por impossiblidade efectiva da sua realização ou porque o lado negativo leva logo imensa vantagem sobre o lado positivo.

Para mais, se a doença impede qualquer atenção contínua por um mínimo de tempo sobre, por exemplo, um livro, as coisas pioram declaradamente. O espírito vagueia, perde-se, o que num momento captura logo o esquece a seguir e quase nem a si mesmo se sente nessa caminhada desajeitada. O livro cai das mãos, como dizem os franceses. Por isso mesmo, já que, graças à doença, a única actividade mais ou menos organizada a que tenho tido direito por estes dias é a contemplação de movimentos de guarda-chuvas na rua onde moro, um assunto sem potencial para interessar quem quer que seja, decidi-me escrever hoje sobre assuntos variados destes últimos dias. Coisas curtas, sem qualquer fio condutor que, pelo menos na aparência, as una.

Comecemos pela Rússia. Para alguns de nós nascidos em 1960, a defunta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (quatro palavras, quatro mentiras, dizia o filósofo Cornelius Castoriadis) sempre representou o paradigma de uma sociedade monstruosa e estéril por regra e por princípios internos, paraíso da burocracia e do Gulag (não faço aqui distinções entre o período que vai de Lénine a Estaline e o que se lhe segue, distinção que em bom rigor deveria ser feita). A sua implosão em 1991 pode ser considerada, sem excessiva ilusão retrospectiva, quase fatal.

O que sobrevive desse universo mental na actual Rússia de Putin é assunto para especialistas. Eu, que o não sou, sou sensível a continuidades e diferenças. Certamente que entre as continuidades se encontram as várias formas de desprezo pelo ser humano, que entre os bolcheviques, a começar por Lénine, mereceram abundante teorização e, a pouco e pouco, ainda na URSS, se tornaram uma mera necessidade de Estado sem particular sedução intelectual. Putin, um “prático” ex-KGB, prolonga consagradamente esta tradição. O caso obviamente mais notório destes últimos tempos é o da tentativa de assassinato, em Inglaterra, através de um gás neurotóxico, do ex-espião Sergei Skripal e da filha. Não digo que seja sequer o exemplo mais ilustrativo, longe disso, mas é um bom exemplo da brutalidade de um poder que só se ousa pensar sob o modo do absoluto e que, entre nós, o PC continua a afeiçoar. O “Sol da Terra” de Álvaro Cunhal pode ter mudado de forma, mas ainda confere calorzinho e a imagem de uma brutalidade sem disfarce. Porquê então admirarmo-nos com várias tolerâncias, implícitas ou explícitas? Não foi sempre assim?

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Outro caso que comoveu a opinião pública foi a denunciada influência do facebook, de que se serviu a Cambridge Analytics, na eleição de Donald Trump. Como lembrou aqui Rui Ramos no outro dia (“O facebook ajudou Trump? Então já não presta”) e como há uns tempos atrás já o havia feito Helena Matos no blog “Blasfémias”, a utilização de um processo em tudo semelhante por Barack Obama em 2008 havia sido celebrado como uma imensa vitória e um alargamento da democracia. De repente, tudo mudou. Dos salões do palácio passou-se às cloacas de Roma. Motivo? Nada de objectivo, realmente. Apenas o nome do beneficiado pela tecnologia, que obviamente se descobriu, de repente, ser intrinsecamente perversa. Súbitas descobertas destas, qualquer pessoa com idade para ler as aventuras de Hulk, o gigante verde, já as observou vezes sem conta. O óptimo afinal é péssimo quando não é óptimo nosso. Foi sempre assim.

Terceiro e último exemplo. A 23 de Março, um marroquino naturalizado francês em 2004 resolveu, em nome do Islão, matar quatro pessoas no sul da França, em Carcassonne e num supermercado de Trèbes, ferindo umas outras quinze. O relato foi certamente seguido com choque e emoção, mesmo apesar da sua triste banalidade contemporânea. Mas será que tal coisa obrigou alguma das habituais cabeças falantes que, por exemplo, as televisões acolhem a referir-se a esse particular magma de crenças que constitui uma possibilidade muito real e efectiva do Islão? Não para dizer que o Islão tenha de ser assim (obviamente não tem), nem para sugerir que o terrorismo é o caminho natural dos muçulmanos (proposição demonstravelmente absurda). Apenas para nos interrogarmos seriamente pelas razões de ser destes actos em vez de inventarmos histórias da carochinha segundo as quais nada há de detectavelmente relacionado com o Islão nos atentados que em seu nome são perpetrados. Mas, sejamos sérios, esta atitude corrente ainda surpreende alguém? Mesmo para a cabeça mais desmemoriada, desde o 11 de Stembro de 2001 que não se ouve praticamente outra coisa. Qual a razão para a admiração?

Escrevi no princípio que talvez não haja nestes exemplos avulsos (é claro que podia ter dado muitos outros) nenhum fio condutor que os una. Talvez não – mas talvez sim. Entre a mais ou menos explícita admiração pela brutalidade cínica de Putin, a súbita inversão do bem no mal na caracterização de uma possibilidade tecnológica ou ainda a recusa de conceber uma relação que choque com a nossa comum maneira de ver as coisas em matéria religiosa, talvez haja um ponto comum. A saber: o amor da excepção e do privilégio que as nossas sociedades democráticas recalcam em toda a extensão da sua superfície. A excepção e o privilégio da ave de rapina spengleriana que quase é Putin, a excepção e o privilégio da encarnação forçosamente alucinatória do Bem sobre uma não menos alucinatória personificação do Mal (e da estupidez, e da ignorância, etc.), a excepção e o privilégio de uma religião que se concede meios excepcionais de manifestação (digamos assim) das suas crenças e que simultaneamente goza de um estatuto que interdita por inteiro a pura e simples menção dessa excepcionalidade. A admiração do privilégio e da excepcionalidade, proibida à porta de entrada das nossas sociedades, entra pelas traseiras a galope e faz os estragos que conhecemos.

Mas não quero insistir demais nesta sugestão especulativa. Há algo de muito mais palpável e indiscutível do que ela. Não me refiro sequer à desonestidade dos raciocínios referidos nos três exemplos que dei. Refiro-me à sua banalidade, à sua constância, à sua repetição. Como se fossem tendências naturais do espírito humano destinadas, na sua quase uniformidade, a perpetuarem-se, imunes a qualquer refutação, dia após dia, investindo-se em qualquer espécie de objectos.

Somando tudo, os guarda-chuvas que se vêem do meu primeiro andar apresentam imensamente mais variedade. Admito que por ocultarem sabiamente os espíritos que sob eles navegam. Seja como for, é preciso encontrar uma virtude qualquer quando, por uma razão ou outra, nos encontramos incapacitados das actividades mais profícuas.