Carlos Alexandre. Sergio Moro. Giovanni Falcone. Em diferentes países, em diferentes épocas e em diferentes contextos, estes juízes tornaram-se nos símbolos daquilo que num país pode funcionar como último reduto face à captura do Estado por poderes e interesses paralelos.
A admiração que sinto por estes homens – e note-se que um deles, Falcone, foi assassinado com a esposa pelos criminosos que perseguia e que quer Carlos Alexandre quer Sergio Moro sabem o que é ser ameaçado – é equivalente às reservas que experimento pelos efeitos colaterais do seu protagonismo. Não é irrelevante para o regime nem para todos nós que tenham de ser os juízes a fazer aquilo que os políticos e os eleitores deviam ter resolvido. Não tenho dúvidas de que a judicialização da política, particularmente acentuada neste início do século XXI, vai marcar nem sempre positivamente as nossas sociedades, tal como o intervencionismo dos militares o fez no século XX.
Mas em abono dos juízes diga-se que quem criminalizou a sociedade, quem judicializou a política não foram as polícias nem os juízes. Fomos nós. Fomos nós porque enquanto eleitores demos o nosso voto a líderes que, muito antes de serem visados em processos judiciais, tinham procedimentos públicos, notórios, que não podiam de modo algum ser moral e politicamente sancionados (e, sim estou a referir-me à vitória de Sócrates em 2009). E fomos também nós porque enquanto cidadãos paulatinamente temos baixado os braços perante a substituição da moral pelo processo-crime.
Ao aceitarmos que as esquadras e os tribunais se tornem os espaços de distinção entre o certo e o errado – entretanto reduzidos à última e perversa instância de ser ou não considerado crime – chamámos os juízes para o centro do espaço político. E não só, metemo-los onde só deviam entrar excepcionalmente: nas salas de aula, nos corredores das escolas e nas nossas casas. Estão por todo o lado, ocupando o espaço de figuras de autoridade como os pais, professores, funcionários, pessoas mais velhas… devidamente apeadas pela psicologia, pedagogia, sociologia e outras alíneas das ditas ciências sociais e humanas que de ciências não têm nada, de humanas ainda menos e que como bem se vê cumprem com afinco a parte das sociais, só que infelizmente no capítulo das engenharias.
Onde antes estava o professor a colocar o ponto final numa discussão entre alunos – e sim algumas vezes terminavam-nas com gritos autoritários e até com umas estaladas distribuídas com equidade, e não vejo nisso qualquer problema – está agora um professor e vários alunos, todos paritariamente a prestar declarações perante os agentes policiais. Estes registam o incidente que, por sua vez, pode ou não dar origem a um processo e vai provavelmente gerar uma sinalização dos menores em causa por bullying, quiçá por assédio e várias outras problemáticas sociais que podem ou não cruzar-se com a questão das comunidades hostis, do género e dos territórios de pertença.
Será que ninguém percebe o que se está a fazer a um adolescente quando este, para as mais simples questões do quotidiano, em vez de ter de responder perante o professor ou os pais o passa a fazer, perante um polícia ou um juiz? Estamos não só a tratá-lo como um criminoso mas também a dizer-lhe que pode fazer tudo aquilo que não for considerado crime.
Contava-me recentemente uma pessoa que trabalha com reclusos que há escolas a efectuar pedidos para que turmas de alunos menores visitem cadeias. Entre outros objectivos pretender-se-á com estas idas às prisões que as crianças percebam que, caso se portem mal, podem acabar presas! E que estar preso é mau.
Ou seja, desautorizados os pais, desautorizados os professores, desautorizada toda a sociedade porque, coitadinhos dos jovens, qualquer repreensão os traumatiza, tudo se tornou relativo. Consequentemente o único limite para as crianças de hoje perceberem que não podem fazer tudo aquilo que querem é levá-las às cadeias onde, o mais empiricamente possível, podem verificar que têm de se controlar porque caso não o façam a vida lhes pode correr mal.
Nas empresas e nas casas o processo correu do mesmo modo: gente esclarecida nas várias técnicas de prejudicar os outros ultrapassa todos os limites da decência. E fazem-no com absoluto sentido de impunidade porque na verdade muitas das pulhices que fazem não são crimes (e esperemos que nunca o sejam porque de modo algum se pode criminalizar tudo o que moralmente reprovamos) e não sendo crimes ninguém considera adequado, possível ou necessário mostrar a sua condenação.
O resultado dessa degradação moral que representa aceitar como bom tudo o que não é considerado crime é termos os juízes a ocupar o espaço que devia ser da moral e do bom senso. Os juízes que interrogam Lula e Sócrates só o fazem porque nós não quisemos fazer-lhes pergunta alguma.
Um dia vamos ter de mandar os juízes para os tribunais tal como no passado houve que mandar os militares para os quartéis. Nada disso será simples ou isento de riscos. Mas não esqueçam: os juízes só estão hoje onde estão porque os políticos desertaram e os cidadãos meteram baixa psicológica.
PS. Vergonhoso o comportamento branqueador no caso de Lula como também o foi com Sócrates desses artistas, observatórios, ONG, activistas, fundações, confederações, sindicatos, eternos rebeldes… que vivendo oficialmente do discurso da exigência sobre o sistema, quando não da gritaria contra o sistema, se transformam na muralha de aço que, qual milícia, protege o seu caudilho de qualquer escrutínio. Estes exercícios de justificação do injustificável revelam como hoje chamamos elites ao grupo de privilegiados que os líderes políticos sustentam com dinheiros públicos.