A entrevista de Maria Luís Albuquerque a Maria João Avillez e David Dinis, aqui no Observador, deve ter tirado uns minutos de tranquilidade a muito oligarca, e justifica alguma reflexão.
A bancarrota de 2011, evitada in extremis pelo pedido de ajuda internacional, quase desmanchou o regime: demonstrou a incompetência da classe dirigente, e desfez as expectativas dos cidadãos. A oligarquia, porém, não desesperou.
Primeiro, acreditou que o problema português era suficientemente insolúvel e comum a outros países europeus (como a França e a Itália), para não ser um problema: a UE acabaria por ter de usar os seus recursos para restabelecer um simulacro dos bons velhos tempos. Daí a alegria com que os nossos oligarcas proclamam que a dívida não é sustentável. É o optimismo do quanto pior, melhor.
Segundo, esperou encontrar bodes expiatórios para a austeridade. O papel foi distribuído, naturalmente, aos actuais governantes: eram “neo-liberais”, que por simples capricho de sadismo ideológico teriam forçado o país a uma tortura orçamental desnecessária. Um dia, os “verdadeiros” socialistas, os “verdadeiros” sociais-democratas e os “verdadeiros” democrata-cristãos desceriam dos céus televisivos para, muito unidos, expulsarem os intrusos. Não estava previsto que estes resistissem. Até por muitos deles não serem “políticos”, talvez lhes bastasse terem acrescentado ao currículo uma experiência governamental, para saírem de cena em sossego, levando consigo toda a culpa.
Ora, a entrevista de Maria Luís criou dúvidas a este respeito. Em primeiro lugar, lembrou que o contexto nunca será propício a restaurações do antigamente. Só porque o problema é muito grande não quer dizer que não haja um problema: a UE não tem recursos para poupar todos os países ao ajustamento durante todo o tempo, como descobriram a França e a Itália. O poder político não chega para mudar o mundo.
Mas Maria Luís criou outra perspectiva ainda mais inquietante para os putativos restauradores: é que pode não se ir embora. Ela formulou a hipótese em relação a Passos Coelho (“seria um excelente líder da oposição”), mas deve-se entender sobretudo em relação a ela própria. Até porque “gosta de política”, como esclareceu, tem uma atitude distintiva, como provou (por exemplo, não vê drama nenhum em estar à direita), e é relativamente jovem, como fez questão de lembrar (“sou muito nova para escrever memórias”). Subitamente, a ministra das Finanças obrigou-nos a aceitar que esta governação pode não se reduzir a uma mera improvisação para executar o memorando, como por vezes pareceu.
Até agora, vivemos no século XXI sob lideranças que no PS derivam dos governos de Guterres (José Socrátes, António José Seguro, António Costa), e no PSD dos governos de Cavaco Silva (Durão Barroso, Santana Lopes, Marques Mendes, Luís Filipe Meneses, Manuela Ferreira Leite). Irão os actuais ministros e secretários de Estado formar uma outra geração de dirigentes políticos, a começar pela própria Maria Luís?
Não é uma hipótese bizarra. Em Portugal, todas as gerações de líderes partidários começaram em governos, e neste momento, depois do espectacular fracasso das chefias surgidas na primeira década do século XXI, há lugar para novos protagonistas. Talvez tenha sido sempre esse o maior medo dos velhos oligarcas, e daí a aversão desmesurada que não foram capazes de esconder contra alguns dos mais jovens membros do governo. Uma coisa podem reclamar: foram eles os primeiros a dar-lhes importância.
É verdade: para fazer política, não basta gostar, nem basta ter atitude. É preciso formar grupo (porque ninguém faz política sozinho, ou com um ou dois assessores) e falar para os cidadãos (e não apenas para a burocracia europeia). Mas suponhamos que alguns dos actuais governantes tentam e conseguem chegar a esse nível. Então, os pasteleiros de futuros “blocos centrais” terão uma dificuldade suplementar. Até agora só contavam, para os seus entendimentos, com os velhos tarimbeiros do regime (os “verdadeiros” sociais democratas, os “verdadeiros” democrata cristãos, etc.). Como é que vão encaixar o novo pessoal político? Tudo será então um pouco mais complicado do que se imagina na Câmara Municipal de Lisboa e arredores.