Não há grande paciência para os “rottweilers” dos governos, sejam eles quais forem. Para aqueles que acham que isto da governação é 90% de combate mediático e de propaganda e 10% de medidas efectivas e resultados reais. E para os que se irritam com os números, com a realidade nua e crua ou com as notícias que saem ou hão-de sair.
Seja Miguel Relvas e as ameaças a jornalistas (governo de Passos Coelho), Rui Gomes da Silva e o silenciamento dos comentários de Marcelo na TVI (governo de Santana Lopes) ou as exaltações de José Sócrates ao telefone com jornalistas (governos do próprio).
Agora temos o combate às estatísticas do passado e a quem as divulga, através das indignações de ilustres socialistas como João Galamba, José Magalhães e os amigos do blog “Geringonça” – já agora, o nome é muito bom e demonstra um “fair-play” desarmante que, tristemente, acaba aí.
A coisa está deste modo: quem se atreve a mostrar um gráfico com a evolução da dívida pública portuguesa desde o início do século, leva – na linha da ameaça de outros tempos de Jorge Coelho.
É entendível que o PS lide mal com esse seu passado recente e com os resultados a que chegou. Receber um país com uma dívida pública de 62% do PIB (todos os dados que vou citar são os da base de dados da Comissão Europeia e podem ser consultados aqui) em 2005 e deixá-lo, seis anos depois, com mais de 96,2% do PIB é obra da qual ninguém se deve orgulhar.
O governo de Passos Coelho deixou agora uma dívida de 128,2% mas manda a honestidade intelectual dizer que, entretanto, o perímetro em que é medida foi alterado. Passou a incluir empresas do Estado e algumas parcerias-público privadas que não entravam na contabilização.
Aliás, em Janeiro de 2010 o BPI divulgou publicamente um estudo sobre a dívida pública em que, contas feitas com inclusão das empresas públicas não sustentáveis, municípios e regiões, já a calculava em cerca de 100% do PIB – na altura a dívida calculada de acordo com as regras do Eurostat era de 83,6%.
Não foi por acaso que José Sócrates, então primeiro-ministro, se irritou com o estudo, como notou na altura Nicolau Santos – insuspeito de ser um adepto da “política de empobrecimento”, certo? – neste artigo no Expresso.
É então um dado objectivo, sustentado por números que não merecem contestação, que o essencial da trajectória insustentável da dívida do Estado foi desenhada antes da chegada da troika.
E o défice? No final de 2004 era de 6,2%. No final de 2010 foi de 11,2%. E no final de 2015 foi de 3,0% (na mesma fonte já citada, da Ameco) ou de 4,4% se mantivermos a operação do Banif na conta. Podemos fazer as contas como quisermos – com ou sem juros ou média anual – que chegamos invariavelmente à mesma conclusão: no período 2005-2010 o défice orçamental aumentou e foi superior ao perído 2011-2015.
Podemos, depois, ajuizar o que quisermos em termos qualitativos. Que a redução do défice dos últimos anos atirou muita gente para a pobreza, que foi feita de forma cega, que não foi sustentada, etc. Todos estes julgamentos e análises são válidos, absolutamente legítimos e fazem parte de propostas políticas alternativas que é sempre saudável colocar perante os eleitores.
Mas querer reescrever os números e a forma como as coisas evoluíram é, claramente, prestar um mau serviço ao país e, sobretudo, aos próprios que o tentam fazer.
Estas tentativas de ocultar uma realidade que é cristalina são preocupantes por duas razões. Primeiro, porque denunciam que uma parte do PS não aprendeu nada com os erros que cometeu num passado que está muito próximo. O caso seria mais para reconhecer os erros, pedir desculpa e garantir que não voltam a cometê-los.
E depois porque, não tendo aprendido nada, corre o risco de repeti-los. Ouvindo e lendo a forma como alguns socialistas reagem a estatísticas passadas que estão consolidadas fica-se com a ideia que se pudessem fazer recuar o tempo novamente até 2005 tinham feito tudo da mesmíssima maneira para chegar ao mesmo resultado: a bancarrota. É que, por muito que lhes custe, esta ocorreu após seis anos de governação socialista. E o resgate foi pedido, negociado e assinado por socialistas.
Foi depois tragicamente executado? Com radicalismo ideológico? Seja. Mas esta crítica dos socialistas à tentativa de cura seria tão mais eficaz e aceite como legítima e genuína se, antes disso, assumissem as suas responsabilidades na criação da doença.
Enfrentem a realidade e os números. Já começa a tardar e só têm a ganhar com isso. E o país também. Ou querem mandar apagar todos os gráficos do défice e da dívida?
Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com