Vamos lá ver se nos entendemos. Primeiro: a não ser que ocorra uma grande surpresa que nem as sondagens, nem o “sentimento da rua” antevêem, nem o PS nem a coligação vão obter a maioria absoluta que lhes permitiria governar com estabilidade. Segundo: apesar do “empate técnico” das sondagens, o PS ainda é o favorito, pois será mesmo surpreendente que os portugueses, depois de tantos sacrifícios, reelejam a mesma maioria e o mesmo primeiro-ministro. Terceiro: o problema, o grande problema do país não é a austeridade (que vai sendo aliviada pouco a pouco), mas a necessidade de reformas que, mais do que prometer riquezas, garantam sustentabilidade a um modo de vida que, olhando para o resto do mundo, continua a ser confortável. Uma dessas reformas é a da segurança social, até o PS o reconhece.

Dito isto, atentem nesta passagem da lei que está em vigor, aprovada por um governo PS de que até fazia parte António Costa: “A lei pode ainda prever (…) a aplicação de limites superiores aos valores considerados como base de incidência contributiva ou a redução das taxas contributivas dos regimes gerais, tendo em vista nomeadamente o reforço das poupanças dos trabalhadores geridas em regime financeiro de capitalização.” Para quem não entenda à primeira, o que aqui está previsto é a possibilidade daquilo a que nesta campanha eleitoral se tem chamado “plafonamento horizontal” e está no programa da coligação. O artigo é o 58º da lei de 2007, onde este princípio é aceite mesmo que colocando algumas condições à concretização do que se designa por “limites contributivos”.

Mas há mais. Dez anos antes, era primeiro-ministro António Guterres de um Governo que também integrava Costa, e uma célebre Comissão do Livro Branco da Segurança Social suscitou o mesmo princípio, que nessa época até recolheria o apoio de Correia de Campos, alguém que foi logo acusado de ser “ultra-liberal”. Não encontrei registo de que Costa tivesse então tomado posição nessa polémica que tinha como figura de proa, do outro lado da barricada, o inevitável Boaventura Sousa Santos. Encontrei sim a factualidade da gestão política deste tema: como se aproximavam eleições autárquicas, o Livro Branco foi para a gaveta. Estávamos em 1997 mas o “pântano” que levaria, em 2001, à demissão de Guterres já dava sinais de vida.

Hoje todos os que ouviram os debate entre Passos e Costa, ou vão seguindo a sua campanha pelas ruas, mercados e polidesportivos deste país, conhecem o discurso do líder do PS: qualquer regime de capitalização é equivalente a “correr o risco de acontecer as pensões dos reformados o mesmo que sucedeu aos lesados do BES”.

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Não querendo, por agora, retomar a discussão sobre o futuro do sistema de pensões, sirvo-me deste exemplo para sublinhar que, mesmo estando António Costa em campanha há mais de um ano (pois começou por desafiar e derrubar António José Seguro), o seu pensamento escapa-me. Não sei mesmo se também não escapa ao próprio, tal foi a sua atrapalhação sobre o corte de mil milhões de euros nos regimes não contributivos da segurança social.

Não há dúvida que a equipa que fez o seu programa previu esse corte – Mário Centeno disse-o claramente em recente entrevista ao Expresso –, tal como já não restam dúvidas de que não saberemos daqui até 4 de Outubro como é que ele se concretizará ou como é que foi calculado. Isso não acontecerá por uma razão simples: o PS sabe que tinha de mostrar contas para dar credibilidade às suas promessas, e por isso escolheu um grupo de académicos para produzirem as necessárias folhas de excel; mas o PS também sabe que não há milagres e, portanto, que também ele, se chegar ao governo, terá de fazer cortes. Cortes que, diga-se de passagem e pelo que se pode adivinhar sobre o sentido desta medida, até serão comedidos e justos. Mais do que isso: serão cortes necessários. Só que, não deixando de ser “cortes”, contrariam a ficção de que com um novo executivo socialista se “virará a página da austeridade”. E contrariam uma campanha que, à solta na estrada, começa a multiplicar promessas conforma as audiências, da introdução de portagens mais baixas à redução das taxas moderadoras do SNS, passando por colocar mais enfermeiros e médicos no interior.

De resto, falo na ficção de “virar a página da austeridade” porque nem as agências de rating acreditam nela. Ainda sexta-feira a Standard and Poor’s subiu ligeiramente o rating da dívida da República e fê-lo prevendo “uma continuidade global no que diz respeito às políticas [que têm sido seguidas], independentemente do resultado das eleições que se avizinham”. Ou seja, a S&P acha que nada de essencial mudará mesmo que o PS ganhe as eleições.

Ora é chegado a este ponto que não se hei-de ter pena de António Costa ou dos portugueses. Se ter pena de ele estar enganado sobre o que vai fazer ou pena de estar a enganar os eleitores sobre o que pode realmente vir a fazer.

Ou seja, tenho pena de António Costa por se alimentar de uma ilusão, por acreditar que vai mesmo fazer o que promete, por não ter aprendido nada com as experiências de Hollande, de Renzi, até de Tsipras. Ou melhor: aprendeu a dissimular, escondeu-se atrás de um grupo de economistas, não entendeu sequer que o seu programa também tinha cortes, e anda por aí a criar falsas expectativas. Fá-lo, é certo, com mais manha, pois não dá números, nem sequer avança garantias. Procura não ser apanhado na primeira esquina, mas parece acreditar mesmo que vai ser ele a encontrar aquilo de que o centro-esquerda anda à procura há duas décadas sem grande sucesso: uma política realmente alternativa, um sonho idealmente “socialista” numa Europa que está a ter dificuldades em lidar com a globalização e onde o problema é sustentar o Estado Social, não prometer mais Estado Social.

Pena ainda de António Costa por não ser possível acreditar na sua sinceridade. Quem é ele afinal? O político de esquerda que é também liberal, como liberais são algumas das propostas de Centeno? Ou o homem que quer ser eleito sem acreditar no que propõe? O demagogo que vimos, por exemplo, a utilizar argumentos próprios do Bloco de Esquerda para atacar o plafonamento? Ou o político pragmático mais interessado no que funciona do que na ideologia? O conciliador, como gosta de ser retratado, ou o radical que rejeita qualquer compromisso, como voltou a fazer este fim-de-semana?

Talvez tudo isto não seja mais do que resultado da obsessão de agradar a gregos e troianos – neste caso, aos eleitores titubeantes do centro, receosos do regresso do velho PS, e aos eleitores mais radicais da esquerda, os que hesitam entre votar útil no PS ou votar com o coração num Livre ou num BE.

Não é possível manter eternamente este equilibrismo, e aí que começo a ter pena do povo português. Não pelo que possa decidir a 4 de Outubro, mas pelo que pode via a descobrir a 5 de Outubro. Se o PS ganhar, vai governar com quem? Não sabemos. Se o PS perder, vai deixar que outros governem? Parece que prefere o caos. E será o PS capaz de nos dizer mais alguma coisa sobre a governabilidade até irmos às urnas? Cada dia que passa duvido mais que isso aconteça.

É provável que, do interior de uma arrogância de que só agora vimos alguns sinais, como no trato com os jornalistas “impertinentes”, António Costa ache que pode consertar tudo o que andou a escavacar durante esta campanha eleitoral (como pensa que já consertou tudo o que, há um ano, escavacou no interior do PS). Talvez até pense que é só uma questão de habilidade, algo ao alcance do seu talento natural. Engana-se, porque o país não é a câmara de Lisboa – nunca foi.

E a tragédia do seu engano é também a nossa tragédia e a deste pobre povo. A tragédia do dia seguinte. A de 5 de Outubro.