Olhando para muito do que se passa hoje em nosso redor, uma pessoa apanha-se a pensar, a propósito da extrema-direita e da extrema-esquerda, que por vezes os opostos coincidem mesmo, e isso não de uma maneira acidental, mas essencial. É como se as paixões políticas dominantes do século passado (o comunismo, o fascismo, o anti-semitismo e o anti-liberalismo) se tivessem, por assim dizer, composto umas com as outras de modo a formarem um todo coerente. É claro que elas sempre compuseram umas com as outras, mas nunca, como hoje, com tal grau de intimidade.

A expressão “totalitarismo” é sem dúvida equívoca, como a quase totalidade dos conceitos da teoria política, mas possui, apesar de tudo, um certo valor descritivo. E, se a usarmos com alguma liberdade, não custa aplicá-la a regimes tão aparentemente diversos entre si como alguns Estados islâmicos ou, por exemplo, a Venezuela “bolivariana” de Chávez e Maduro. Não faz sentido classificá-los como “de esquerda” ou “de direita”. Por mais diferentes que sejam as sua bases culturais, ou a sua retórica oficial, eles participam de um universo de significações ao qual a palavra “totalitário” se ajusta razoavelmente (sei que pode haver reticências quanto à Venezuela; se quiserem, “proto-totalitário”). Em primeiro lugar, pelo facto muito notório de tudo nesses regimes ser dominado por uma ideia única que atravessa todo o corpo social e exige absoluta unanimidade, bem como pela constante designação de inimigos exteriores, que definem, pela negativa, a própria natureza desses regimes. Ora, isto não é “de esquerda” nem “de direita”. A composição das paixões políticas que os fazem ser aquilo que são alimenta-se tanto de ideias que pertencem aos modos radicais de um campo como do outro: do fascismo como do comunismo, do anti-semitismo como do anti-liberalismo.

Pode-se dizer, sem dúvida, que a tradição ocidental liberal vive também, desde o Iluminismo do século XVIII (e aqui não faz sentido distinguir as variantes britânica, francesa, americana ou alemã), de uma ideia dominante que aspira a estruturar a sociedade: a do aperfeiçoamento, tanto individual como colectivo, dos seres humanos. É verdade. Mas acontece que tal exigência contém no seu seio, não como um elemento acidental, mas como algo de central, a ideia da pluralidade das actividades humanas e a recusa de as conceber como devendo submeterem-se a uma significação única e absorvente, o que faz toda a diferença. As actividades e os seus objectos não se encontram num estado de dependência por relação a um desígnio único que tudo subsumiria.

É certo que esta pluralidade produz em muitos insatisfação, em grande medida porque pode ser experimentada como sinal de uma fragmentação do sentido social, alienação e perda de valores. E a reacção contra esta tradição iluminista assume, por isso, a figura do desejo de um corpo social uno e fechado sobre si, no qual tudo possa aparecer como intimamente ligado, sem margem para a pluralidade, o conflito regrado ou o mais vago sinal de excentricidade individual. Como se o sentido devesse, para ser sentido efectivo, ser excessivo. Mas essa reacção, que visa um corte com a tradição iluminista e os seus muitos e por vezes improváveis antecessores, não é, vale a pena repetir, “de esquerda” nem “de direita”.

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Por razões profissionais, obriguei-me a ler ou a reler, por estes dias, algo do muito do que foi escrito sobre o comprometimento político com o nazismo do filósofo alemão Martin Heidegger e sobre eventuais coincidências de tal comprometimento com a sua filosofia. Com interesse, mas sem particular prazer. Apesar de tudo, pensar o bem sabe melhor do que pensar o mal, e neste caso trata-se mesmo de pensar o mal, para não dizer o pior. O comprometimento foi absoluto, entusiástico e incondicional. Algo que durante décadas os mais zelosos dos seus defensores ou negaram ou procuraram minimizar, como os comunistas costumavam negar ou relativizar os crimes da defunta pátria do socialismo, a pouco saudosa URSS. O que aprendi de novo sobre o comprometimento acrescentou pouco ao que já sabia. Em contrapartida, no que respeita a certas coincidências da sua actividade política com alguns aspectos da sua filosofia, a surpresa foi maior. “Coincidência” não significa aqui “identidade”. Mas, de qualquer maneira, a coincidência chega para assustar um pouco. O que, no entanto, me surpreendeu verdadeiramente diz respeito à herança política do seu pensamento, isto é, ao modo como os seus temas foram politicamente desenvolvidos por gente tanto à direita como à esquerda.

E aqui volto ao princípio, à notável semelhança de uma certa extrema-direita e de uma certa extrema-esquerda. Muita dessa semelhança se encontra fundada em temas mais ou menos explicitamente heideggerianos, e de um modo que tende a obliterar a diferença entre esquerda e direita. Exemplos. O do anti-semitismo, cuja extensão foi revelada sobretudo em documentos publicados nos últimos anos, e que em parte explica algum entusiasmo pela sua filosofia no Irão teocrático e em algumas outras paragens do mundo islâmico (o anti-cristianismo heideggeriano também ajuda). O anti-liberalismo, desdobrado, como não podia deixar de ser, em anti-americanismo. A crítica da técnica, que permitiu a Heidegger, em 1953, não distinguir a produção da morte nos campos nazis e as práticas da indústria alimentar, bem como a concomitante invenção de uma ecologia com consequências políticas pelo menos dúbias. E, sobretudo, a ideia de uma comunidade social maximamente unificada (totalitária), restituidora de um sentido pleno para a existência, à qual o indivíduo se deve obrigatoriamente sacrificar.

Um ponto, de natureza filosófica, merece particularmente ser sublinhado. A filosofia heideggeriana, como qualquer aluno de filosofia ou qualquer pessoa com um vago interesse por ela sabem, reduz a interrogação filosófica à ontologia, e a uma ontologia de um tipo particular: a um inquérito sobre o Ser, excluindo à partida qualquer contribuição a esse inquérito por parte das ciências. O “pensamento do Ser” é o único pensamento que conta: as ciências, declarou Heidegger celebremente, “não pensam”. Dito de outra maneira: do mesmo modo que a comunidade política deve ser concebida como relegando o papel do indivíduo ao estatuto de uma entidade, um ente, que se deve por inteiro sacrificar ao todo, também a pluralidade das actividades humanas e do pensamento sobre elas desenvolvido deve ser, em contradição com toda a tradição iluminista e com todos os elementos anteriores que esta recuperou, destruída (palavra cara a Heidegger) em benefício de um pensamento que tem para si um objecto único, tudo o resto sofrendo de uma absoluta falta de dignidade.

Não vale a pena continuar aqui com uma lista de temas que é formidavelmente extensa, nem detalhar os múltiplos aspectos em que filósofos que, directa ou indirectamente, se inspiram em Heidegger (alguns até no próprio modo como criticam o seu comprometimento com o nazismo) prolongam hoje em dia o essencial da sua atitude filosófica na relação com a política e desenvolvem alguns dos seus temas essenciais. Em contrapartida, vale talvez a pena salientar, voltando ao princípio, que se encontra provavelmente em Heidegger uma das fontes maiores para esse extremismo que não é, nos seus traços essenciais, nem “de esquerda” nem “de direita”. Heidegger oferece uma visão do mundo que apela a ambos os lados e que, de um certo modo, contribui para a sua indistinção.

Certamente que essa indistinção é mais patente entre intelectuais tradicionalmente pouco satisfeitos com as imperfeitas democracias em que vivemos. Mas a sedução dessa visão não se exerce unicamente em mais ou menos sofisticadas mentes. Pela própria dimensão populista da visão, um populismo aristocrático, chamemos-lhe assim, que muitos intelectuais, sem o saberem, exibem, ela chega facilmente às mais desprevenidas pessoas, para quem as aventuras do espírito contam pouco. E o resultado é, como seria de esperar, péssimo. Se estiver para aí virado, para a próxima semana dou exemplos. De intelectuais e da sua influência em matéria política.