“A psicologia básica é uma das minhas sub-rotinas”, diz o cyborg Arnold Schwarzenegger no óptimo Terminator 3. Guardadas as devidas proporções, também eu poderia dizer o mesmo, e foi na intenção de exercitar essa capacidade que terça-feira passada assisti ao debate quinzenal na Assembleia da República. Nem sabia eu no que me estava a meter. E não estou a pensar na pobre e quezilenta retórica parlamentar, feita de gracinhas e graçolas sem graça nem razão, para a qual ninguém, nem o mais sofisticado cyborg, se encontra nunca verdadeiramente preparado. Não, o problema foi mesmo de psicologia básica. A discussão da TSU mostrou-o bem.

Há várias coisas que se percebem sem grande dificuldade, é verdade, como a tão falada “cambalhota” de Pedro Passos Coelho. Independentemente de haver boas razões, do estrito ponto de vista da racionalidade económica, para chumbar as medidas do Governo (o resultado seria um incentivo a que o pagamento do salário mínimo tendesse a aumentar entre os empregadores), há excelentes razões de racionalidade política para o voto negativo: o evidenciar a fragilidade da actual solução governativa, que nasceu do dúbio engenho de um PS perdedor das eleições.

A atitude do Bloco e do PC, manifestando a sua estranheza e mal-estar com o sentido de voto anunciado pelo PSD, percebe-se igualmente. De vez em quando, é preciso encenar por aquelas bandas uma certa virgindade relativamente ao Governo, com o qual não se querem, nem podem, completamente identificar. E neste caso contavam com o voto favorável do PSD à descida da TSU para os patrões, que os deixaria isolados, como desejavam, no protesto. Contavam, por assim dizer, com uma virgindade parlamentarmente assistida pelo PSD. O que é compreensível, mesmo que todos os conheçam, como na outra história, de tempos em que ainda não eram virgens. Ver Jerónimo de Sousa, numa “arruada” em Sacavém, criticar Passos por Passos ir votar como ele pode parecer esquisito, mas não curto-circuita as forças do espírito.

A coisa verdadeiramente estranha, o que perturba a sub-rotina da psicologia básica, é a atitude do PS. Pelas vozes de Ana Catarina Mendes e de Carlos César, o PS perguntou-se, antes do debate, de que lado estava, afinal, o PSD. Do nosso ou do deles? Esta questão dos “lados” é muito interessante. Porque, nesta matéria concreta, só há duas possibilidades: ou o PSD está com o PS ou está com os partidos que, no Parlamento, apoiam o Governo do PS. Em ambas as situações está, directa ou indirectamente, do lado do Governo, de acordo com os estranhos critérios que presidiram à sua formação. A menos que os partidos que, além do PS, apoiam o Governo não apoiem verdadeira esolidamente o Governo. Mas nesse caso, como é óbvio, o problema é bem mais grave e anterior à questão da TSU. Por outras palavras: não é conjuntural, é estrutural. E aqui a sub-rotina psicológica começa a emperrar, porque Costa não pára de proclamar que tudo corre às mil maravilhas entre o PS e os outros.

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Mas há motivos para maior perplexidade. Costa, no debate parlamentar, elogiou com afecto e veemência a coerência do Bloco e do PC na sua recusa da descida da TSU para os patrões e censurou com espanto e rispidez a incoerência do PSD. Eu sei que é um hábito democrático elogiar a coerência dos adversários políticos. Álvaro Cunhal foi vezes sem conta objecto desse elogio disparatado. Mas elogiar a coerência de aliados (não adversários: aliados) que votam contra nós é indiscutivelmente um facto inédito. Talvez manifeste uma grandeza humana sem limites, mas escapa decididamente ao entendimento. E não há psicologia básica que o explique. Uma pessoa apanha-se a sonhar com as extraordinárias virtualidades assim abertas.

Passos deu uma “cambalhota”? Se quiserem. Mas a cambalhota de Passos, comparada com os prodígios circenses de António Costa, é coisa de pouca monta e matéria apenas para entreter os aficionados destas coisas, incluindo quem, no PSD (o último em data, depois de Marques Mendes e de outros, foi o extraordinário Silva Peneda), não perde uma única oportunidade para falar da mística identidade do PSD e dos augustos tempos social-democratas de Sá Carneiro. (Devia haver uma TSU elevada para quem usasse o nome de Sá Carneiro em vão.)

As actividades circenses de António Costa não incluem apenas cambalhotas. Incluem igualmente malabarismos de vários tipos, acrobacias aéreas e, naturalmente, as célebres pirâmides humanas. Nesta última pirâmide as coisas não correram bem. Recorrendo à linguagem técnica, o intermediário (suponho que o secretário de estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, que em tempos ameaçou fazer tremer as pernas dos banqueiros todos deste vasto mundo) não conseguiu que a base que sustenta o Governo suportasse o volante, o acrobata que se encontra no topo, António Costa. E o que se decidiu? Pôr a culpa toda do desastre no público, por este não ter acarinhado devidamente a trupe.

Não há sub-rotina psicológica que dê para entender isto. Porquê? Porque o Governo de Costa assenta numa ficção incongruente. Não apenas numa ficção. É legítimo pensar que qualquer governo, e sobretudo qualquer governo de coligação, se apoia necessariamente em ficções de acordo, fruto de negociações internas. Mas, mesmo em política, há constrangimentos específicos à ficcionalidade. O Governo de Costa, desde o início, ignora-os por inteiro. É mesmo uma ficção incongruente, que só pode durar o tempo de uma ilusão. Talvez um dia se encontre uma sub-rotina capaz de lidar eficazmente com as ficções incongruentes. Por enquanto, parece não existir.