O ex-presidente do ex-BES, Ricardo Salgado, é suspeito de ter abusado do banco para adiar a falência dos seus outros negócios. Tal como no esquema da Dona Branca, aguentou enquanto houve dinheiro a entrar. Este fim de semana, finalmente, o governador do Banco de Portugal teve de protagonizar uma resolução que protege os depositantes, mas não os accionistas – condição, parece, para recorrer ao dinheiro da troika. O culpado da crise do BES, segundo o comentário nacional? Carlos Costa, claro.
Há uma história do mesmo género, mais antiga. Em 2005, o primeiro-ministro José Sócrates convenceu-se de que podia fazer crescer a economia nacional através da despesa pública. O esquema durou enquanto o Estado e a banca se puderam financiar no exterior. Um dia, houve que implorar auxílio e aceitar os termos da troika. Mas Sócrates perdeu as eleições, e foi o seu sucessor, Pedro Passos Coelho, quem teve de executar o programa de ajustamento. O culpado da crise do país, segundo o comentário nacional? Passos Coelho, claro.
Como explicar este costume nacional de culpar quem vem a seguir? Talvez as pessoas se zanguem menos com as Donas Brancas, do que com aqueles que lhes dão a notícia de que se meteram nas mãos de uma Dona Branca. Ricardo Salgado terá criado as imparidades, mas foi Carlos Costa quem teve de sacrificar accionistas. José Sócrates cultivou os défices e as dívidas, mas foi Passos Coelho quem teve de aumentar impostos e cortar pensões e salários. Salgado e Sócrates alimentaram sonhos. Passos e Carlos Costa fizeram tocar o despertador. E, aparentemente, é o despertar que não perdoamos.
Mas talvez haja ainda outra explicação. Na última década, houve uma tentativa de concentrar o poder em Portugal, protagonizada por Sócrates no Estado e por Salgado na banca. Coligados, o representante do arrivismo partidário e o representante da fidalguia financeira procuraram controlar ou influenciar bancos, empresas, jornais, televisões, etc. A crise de 2008 abanou-lhes a casa. Em 2011, Sócrates caiu, depois de Passos Coelho se ter recusado a ampará-lo. Em 2014, aconteceu o mesmo a Salgado, também depois de ter batido inutilmente à porta de Passos. Mas se a Parceria Sócrates-Salgado tombou, nem por isso desistiu de turvar a “narrativa”.
Sócrates já veio explicar que tinha todos os problemas nacionais resolvidos com o PEC 4, quando Passos, só pela ambição de ser primeiro-ministro, o derrubou, causando a crise do país. Salgado, um dia destes, argumentará que estava em vias de ultrapassar as momentâneas dificuldades do seu grupo, quando, inesperadamente, o Banco de Portugal conspirou para o abater, provocando a crise do BES. Sócrates, aliás, já começou a preparar o terreno para o seu antigo parceiro, perguntando há duas semanas “porque prenderam Salgado?” Provavelmente, porque Carlos Costa aspira a ser o “novo dono-disto-tudo”.
As autoridades nacionais e europeias não estão imaculadas no processo do BES. As suas decisões, como todas as decisões, são discutíveis. Mas seria patético se a polémica acerca da solução servisse para trespassar as responsabilidades do problema, como aconteceu no programa de ajustamento. Sócrates viu funcionários e pensionistas irritados e a protestar contra quem lhes cortou os rendimentos, não contra quem deixou o Estado sem dinheiro para lhes pagar; Salgado poderá talvez contar com investidores que só se conseguirão lembrar de quem os arrumou no “banco mau”, não de quem os expôs a riscos indevidos. E, tal como Sócrates já fez, também Salgado há-de aproveitar a diversidade de opiniões e as dúvidas e críticas que qualquer solução suscita, para insinuar que teria sido possível manter tudo como estava, sem prejuízos para ninguém. Porque os culpados não são eles. É quem veio a seguir.