Quando me perguntam se o Diabo vem em 2017, costumo responder que o Diabo nunca deixou de estar por aqui. Espero, evidentemente, que não apareça, mas não tenho dúvidas de que paira pela nossa economia.

Vale a pena lembrar que durante o programa da troika as nossas taxas de juro teimavam em não descer. Por isso, ainda no fim de 2013, se falava da necessidade de um programa cautelar que garantisse que o governo português se continuaria a financiar com taxas de juro relativamente baixas. A história é conhecida: não houve um programa cautelar formal, mas houve uma política monetária do Banco Central Europeu tão expansionista que garantiu taxas de juro baixas para Portugal. É sob esse manto protector que temos vivido. Tudo o resto são fantasias.

Quando estamos sob o efeito de antipiréticos, a temperatura do corpo não é um indicador fiável sobre o nosso estado de saúde. Da mesma forma, taxas de juro artificialmente baixas não são um indicador da confiança que os investidores têm na nossa economia. Infelizmente, os nossos problemas estruturais não são radicalmente diferentes dos que tínhamos em 2013. Apesar de termos anulado o nosso défice externo, o país continua altamente endividado; os sectores de actividade protegidos continuam protegidos; as entidades supervisoras e reguladoras não se tornaram mais eficazes; continua a porta giratória entre reguladores e regulados; continua por fazer um ataque severo às rendas das PPP mais escandalosas (e cada vez há menos condições institucionais e políticas para as fazer); foi adiada sine die a discussão séria e profunda sobre a Segurança Social e, finalmente, o nosso sector bancário continua de rastos. Como corolário, a nossa taxa de crescimento é tão medíocre como tem sido desde o ano 2000.

Quem, como eu, acredita que um dos principais entraves ao crescimento de Portugal foi o capitalismo clientelar que se desenvolveu nos anos 90, com relações de conluio entre grandes empresas (em especial nos sectores não-transaccionáveis), banca e política, não pode deixar de ficar assustado com as soluções que vão sendo encontradas para o sector bancário. Depois de alguns primeiros sinais com a resolução do BANIF, protegendo os grandes interesses com, a solução encontrada para os lesados do BES, em que dinheiro dos contribuintes se arrisca a ser usado para salvar aplicações de centenas de milhares de euros em empresas do Grupo Espírito Santo, é a demonstração cabal de que esses tempos estão de volta. É a reversão do não de Passos Coelho a Ricardo Salgado.

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Nos últimos tempos, por diversos motivos, o BCE tem mostrado sinais de que quer começar a reverter as suas políticas expansionistas. Por exemplo, já reduziu o valor mensal de compra de activos financeiros no mercado. Assim, não admira que, passo a passo, o prémio de risco associado a Portugal esteja a retornar a valores anteriores a 2014, como se pode ver no gráfico abaixo, com o diferencial entre as taxas de juro dos títulos de dívida de longo prazo portuguesas.

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Nas últimas semanas, tem-se feito algum barulho em torno dos 4% que a DBRS anunciou (e que renegou no dia seguinte) como sendo o patamar a partir do qual começaria a ter dúvidas sobre a notação que dá à dívida soberana portuguesa. Uma taxa de 4% não é nenhum drama e, em termos históricos, é uma taxa de juro bastante baixa. Adicionalmente, quando lemos notícias a dizer que há uns dias se atingiu os 4%, convém perceber que se está a falar do mercado secundário, ou seja, de taxas a que os investidores transaccionam entre si e não a taxa de juro que o Estado português paga. Essa é definida no mercado primário, sempre que se emite nova dívida. A subida das taxas de juro não se reflecte num aumento imediato dos custos para o Estado português. É antes um indicador de que no futuro, à medida que se for pedindo mais dinheiro emprestado, os custos de financiamento aumentarão.

Infelizmente, o que o gráfico anterior nos mostra é que, se perdermos o manto protector do BCE, as taxas não se ficarão pelos 4%. Será bem pior. E, quando – e se – tal acontecer, outra forma de socorro será necessária. Seja na forma de reestruturação de dívida, de um novo empréstimo ou de alguma outra modalidade com nome ainda por inventar. O que é (quase) garantido é que virá com condições penosas.

A mais justa das homenagens

O PCP prestou a mais justa das homenagens a Mário Soares. É assim que leio o seu comunicado “Face ao falecimento do Dr. Mário Soares”, que tanto indignou algumas pessoas, como, por exemplo, Fernanda Câncio, que lhe chamou um “comunicado de ódio e mentira”.

O que disse o PCP de tão grave? Passo a citar: “(…) o PCP regista as profundas e conhecidas divergências que marcaram as relações do PCP com o Dr. Mário Soares, designadamente pelo seu papel destacado no combate ao rumo emancipador da Revolução de Abril e às suas conquistas, incluindo a soberania nacional.”

Ódio? Muito provavelmente. Mentira? Nenhuma. Para o PCP, Mário Soares foi um travão, se calhar o principal travão, do Rumo à Vitória apresentado por Cunhal em reunião do Comité Central de Abril de 1964. É perfeitamente justa, sob o ponto de vista dos comunistas, a acusação de que Mário Soares teve um papel destacado no combate ao rumo emancipador da Revolução de Abril. A acusação de que Soares combateu a soberania nacional não é falsa. A visão estratégica que Soares tinha para o desenvolvimento de Portugal passava, de uma forma essencial, pela adesão à então CEE — Comunidade Económica Europeia. Ser membro da CEE implica, necessariamente e como sabemos bem, perda de soberania em diversos domínios, que vão desde a política agrícola à política externa e, mais recentemente, à política monetária e orçamental. O PCP, em nome da independência e soberania nacionais, sempre combateu essa estratégia de integração europeia. Sendo um facto que a pertença à União Europeia se traduz numa redução da soberania, o PCP não mentiu.

Até me parece um pouco hipócrita que estejamos a celebrar a vida de Soares, a agradecer-lhe a liberdade que nos garantiu depois do 25 de Abril e a entrada na Europa, e depois fiquemos indignados com o comunicado do PCP. Afinal de que falamos quando falamos de ameaça à democracia a seguir à revolução? Quando lhe agradecemos o comício da Fonte Luminosa, agradecemos o quê? Não é, precisamente, a oposição a Álvaro Cunhal e aos comunistas, bem como a derrota que lhes infligiu? Seria demais exigir ao PCP que celebrasse a sua própria derrota.

As acusações que o PCP faz a Soares são inteiramente justas. Também o ódio e as acusações que os saudosos do antigo regime e do passado colonial lhe devotam são inteiramente justos. Mas há ódios e acusações que são medalhas que se transportam com orgulho. É o caso.