Pode parecer estranho falar do fim de Merkel quando ela acabou de fazer um acordo para uma nova grande coligação com o SPD. Além disso, em política o fim na maioria das vezes é um “fim” entre aspas, sobretudo no caso de uma líder que já mostrou possuir uma grande capacidade de sobrevivência. Insisto, contudo, que desta vez Merkel iniciou o caminho para o fim do seu percurso na política alemã.

Antes de mais, já assistimos ao fim da vida política de Martin Schultz na Alemanha. Primeiro demitiu-se da liderança do SPD e depois o seu partido impediu-o de se tornar o próximo ministro dos Negócios Estrangeiros. Eis o primeiro sinal de que os socias democratas alemães não estão seguros da aprovação pelos militantes de mais uma grande coligação com a CDU. Schultz deveria ter percebido que há limites para o oportunismo político. Perdeu as eleições, em Setembro do ano passado, com o pior resultado do SPD no pós-guerra. O partido continua a descer nas sondagens, estando agora com cerca de 17%, dois pontos à frente dos populistas anti-europeus, a AfD. Pior do que tudo, Schultz prometeu que nunca serviria num governo liderado por Merkel. Quis mudar de ideias, mostrando que a sua palavra nada vale. Obviamente, o SPD levou a sua palavra mais a sério do que o próprio Schultz.

O comportamento de Schultz mostra que os vícios da política bruxelense não sobrevivem nas democracias nacionais. Schultz tornou-se um mestre nas negociações de gabinetes e lugares. Foi assim que subiu até chegar a Presidente do Parlamento Europeu. Mas no que verdadeiramente conta na vida política democrática, eleições, tem sido um desastre. Foi o candidato dos socialistas a presidente da Comissão Europeia em 2014 e perdeu para Juncker. Foi mesmo derrotado no seu país natal. Como líder do SPD foi igualmente desastroso nas eleições legislativas do ano passado. Ironicamente, aquele que se auto-proclamou a voz da democracia europeia é melhor nas negociações privadas dos corredores de poder do que nas eleições democráticas.

Pode Schultz arrastar Merkel na sua queda? Poderá se os militantes do SPD recusarem a grande coligação. A maioria das previsões considera que o SPD aceitará mais uma grande coligação mas a política europeia e a alemã já se tornaram suficientemente imprevisíveis para se fazerem apostas seguras. Depois de terem forçado a queda de Schultz, os sociais democratas alemães poderão provocar o fim da liderança de Merkel na CDU. Será muito difícil para a actual Chanceler manter-se à frente dos democratas cristãos se falhar uma segunda tentativa para construir uma maioria parlamentar. Quatro meses depois das eleições legislativas, a Alemanha continua sem governo. Merkel será considerada a principal responsável se não conseguir formar governo com o SPD. Se os militantes do SPD puderem afastar a “detestada” Merkel com o seu voto, deixarão passar a oportunidade? Sabe-se que muitos membros de grupos radicais à esquerda dos sociais democratas estão a filiar-se no partido para votarem contra a grande coligação. No Reino Unido, ninguém previa que Jeremy Corbyn chegasse a líder dos trabalhistas, mas ele chegou. E venceu com os votos de grupos radicais que aderiram aos trabalhistas. Poderá o SPD replicar na Alemanha a revolução trabalhista?

Se os militantes do SPD decidirem agravar a crise política na Alemanha, votando contra a grande coligação, Merkel provavelmente não terá condições para concorrer a umas novas eleições. Um cenário possível será a formação de um governo minoritário até à eleição de um novo líder na CDU. Mas mesmo que os militantes do SPD aprovem a grande coligação, Merkel sairá deste processo muita enfraquecida. Será na verdade uma coligação de derrotados. Nas últimas eleições, a CDU e o SPD perderam juntos cerca de 20% de votos. Além disso, a maioria dos militantes da CDU ficaram furiosos com os termos do acordo de coligação, o qual serve mais para manter Merkel no poder do que para prosseguir uma agenda política desejada pelo partido. Como disse um militante da CDU, “não sei se o sim ganharia se houvesse um referendo à grande coligação no partido.” A abdicação do ministério das Finanças, juntamente com o ministério dos Negócios Estrangeiros, também foi muito mal aceite na CDU. Como afirmou um deputado do partido, “parece que ainda temos a Chanceler.”

Ninguém o quer reconhecer, mas há uma crise política na Alemanha. O partido anti-europeu foi o terceiro mais votado e as principais forças políticas não conseguem arranjar uma solução de governo forte e credível, e esta última versão da grande coligação não o será seguramente. Na Europa, a maioria quer continuar a viver na ilusão da normalidade, representada pela grande coligação. Mas a política alemã chegou ao fim de um ciclo, mesmo que a CDU e o SPD acabem por formar governo. Já começou a transição para o pós-Merkel. A dúvida imediata será sobre o tempo que durará a transição. Há, no entanto, uma dúvida muito maior. Que Alemanha teremos depois de Merkel? É a questão mais importante da política europeia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR