No meio da desordem internacional em curso e da prolongada tragicomédia lusitana, com a Caixa Geral de Depósitos nas bocas do mundo e tudo o resto em equilíbrio periclitante, as eleições brasileiras municipais do mês passado passaram algo desapercebidas. A verdade, contudo, é que elas trouxeram lições importantes e, porventura, mais positivas do que negativas. O facto mais relevante foi o sinal que essas eleições deram de normalização da vida política brasileira após o drama do impeachment de Dilma Rousseff, a qual já arrastava o peso da presidência antes das próprias eleições de 2014, na sequência das manifestações de descontentamento social de 2013 e do enterro geral da classe política na vaga de corrupção em torno desse gigante da economia brasileira que é – ou era – a Petrobrás.

Envolvendo mais de cem milhões de eleitores e dezenas de milhar de candidatos, as eleições municipais provaram, se fosse necessário, que o golpe parlamentar que derrubou a antiga presidente e, com ela, o alvo a abater que era o PT (então com apenas 17% dos votos para o Congresso), não só nada tinha de sanguinolento como decorreu segundo uma legislação elástica já usada contra vários presidentes, umas vezes com êxito (Collor), outras sem (Fernando Henrique), e sobretudo foi imediatamente seguido pela reposição da normalidade eleitoral.

Uma nota significativa foi a confirmação do aumento gradual do absentismo (no Rio de Janeiro, na segunda volta para a eleição do «prefeito», a abstenção e os votos nulos chegaram a 41,5%), o que, não sendo positivo d0 ponto de vista formal, mostra que o eleitorado brasileiro se está a comportar, cada vez mais, como os eleitorados das sociedades desenvolvidas que também não encontram candidatos em quem votar. O eleitorado brasileiro está, pois, mais maduro. Porventura mais cínico mas não deixa de ter motivos para isso, como sucede aliás em Portugal, onde 50% dos eleitores se abstiveram nas últimas eleições presidenciais.

Quanto aos resultados propriamente ditos, além de se ter verificado uma fragmentação partidária maior do que nunca, acentuando um dos aspectos mais negativos do sistema eleitoral brasileiro, a principal lição a tirar desta primeira votação geral após o impeachment foi uma espécie de ratificação eleitoral do afastamento do PT. Dos milhares de «prefeitos» (presidentes da câmara municipal) do Brasil, o PT fôra o terceiro partido com mais eleitos há quatro anos e agora ficou em 10.º lugar, não tendo ganho em qualquer das grandes cidades do Sul onde o PT nascera outrora como o novo partido progressista que iria reformar o Brasil. Em S. Paulo, onde o PT ainda detinha a «prefeitura», perdeu à primeira volta para o candidato do PSDB, sendo este o partido mais votado no conjunto do país, apesar de o PMDB ter tido mais «prefeitos» eleitos.

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Do balanço político desta enorme votação pelo país fora, ressalta pois o facto de o PT ter sido afastado do lote dos grandes partidos brasileiros, ao mesmo tempo que o PSDB – o partido do antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, actualmente aliado do novo governo – surge pois como o vencedor, ganhando em 28 das grandes cidades brasileiras (o dobro do PMDB) enquanto o PT perdeu 15 e ficou apenas com uma no Norte. No imediato, o PSDB é também o partido que fica melhor colocado para as presidenciais de 2018, dividindo-se todavia a liderança entre o actual governador do estado de S. Paulo, Geraldo Alckmin, antigo candidato já derrotado por Lula, e o senador de Minas, Aécio Neves, que perdeu por pouco em 2014 contra Dilma…

O declínio do PT não se mede, todavia, apenas em votos. Com efeito, o partido sofreu uma quebra profunda com a perda do poder ao fim de mais de 12 anos, havendo concorrido às eleições municipais em Outubro passado com menos 42% de candidatos do que em 2012. Daí porventura algumas das novas «chapas» que se apresentaram este ano. Neste momento, é dentro do próprio PT que surgem as divisões e o desalento, com novas tentativas de reagrupamento e a aparição de vários candidatos a candidatos à presidência da República. No futuro, o ideal seria talvez uma aliança entre o PSDB e um PT regenerado que afastasse o PMDB do bolo governamental, mas as feridas do passado e a atitude simultaneamente salvífica e tirânica do PT não o permitirão com certeza. Prevalecerão, sim, as «coligações» que só engendram a corrupção e, sobretudo, tornam impossível as reformas de fundo das quais um país modernizado como o Brasil carece manifestamente, a começar pela reforma eleitoral e pela desfragmentação do regime federal.

Entretanto, a profunda crise económica e social que arrastou o Brasil ao «impeachment» continua longe de estar resolvida. As últimas notícias revelam que a quebra da actividade e do emprego implicou pela primeira vez em 11 anos uma perda de rendimento superior a 5% em 2015, embora a desigualdade não tenha aumentado durante a crise, tendo ficado o índice de Gini em 0,41 em 2014 (como sucedeu aliás em Portugal, cujo Gini é 0,34 – e quanto mais baixo melhor!). Reverter o modelo estatista, patrimonialista e corporativo que continua a dominar o Brasil será o mais difícil e tanto assim que, como diz Fernando Henrique com ironia e sageza, «o governo Temer é frágil, mas é o que tem»…