Numa entrevista durante o programa de televisão da BBC “The Graham Norton Show” no passado domingo, o actor Adam Sandler – conhecido pelos filmes Gente Grande, Espanglês, Zohan e outros, em que faz sempre o mesmo papel – tocou três vezes no joelho da actriz britânica Claire Foy.
Foi um escândalo! É o que se lê no “The Sun”, num artigo replicado via twiter, segundo o qual os espectadores se revoltaram (“hit out”), depois de Sandler ter repetidamente tocado o joelho da actriz Claire Foy durante a entrevista, “deixando-a extremamente desconfortável”.
O episódio transportou-me até um dos contos morais de Eric Rohmer, “Le Genou de Claire”, filme estreado em 1970 e no qual um adido de embaixada de 34 anos desenvolve uma paixão por Claire, jovem de 16, mais exactamente sobre o seu joelho. É uma relação consabidamente impossível, mas o protagonista, Jérôme, não deixará de consumar a obsessão por aquele joelho, pousando nele brevemente a mão, num gesto de, talvez, compaixão. Tudo termina e muita coisa começa nesse breve toque.
Mas esse era um tempo de poesia, de uma estética que confrontava os tabus, sobretudo na cinematografia europeia de que Rohmer é expoente. E contrasta com o choque vivido por estes dias em Hollywood, face às revelações do caso Weinstein. O poderoso produtor é acusado de ter abusado de dezenas de mulheres , ao longo de décadas, seduzindo-as e chantageando-as. Entre as queixosas contam-se actrizes conhecidas e, para além de ter sido despedido da produtora que tem o seu nome, responsável por filmes como A paixão de Shakespeare, Gangs de Nova Iorque ou A Dama de Ferro, Harvey Weinstein está já a ser investigado pela justiça norte-americana.
A comunidade do cinema mostrou-se estupefacta, apesar de décadas de insinuações e rumores. Mery Streep, que trabalhou com ele na Dama de Ferro, rejeitou a ideia de que “todos em Hollywood sabiam”; pois se há excepções, sendo Streep uma delas, ficam os outros, isto é, quase todos. Abuso de poder é algo desprezível, seja praticado por políticos, homens (são quase sempre homens) em posição hierárquica superior, simplesmente poderosos. Quando esse poder serve para abusar sexualmente de alguém, isso é criminoso. E o que dizer de uma comunidade inteira que sabe o que se passa e não faz nada?
Há muito tempo, tanto que não recordo ano nem fonte, li num romance passado algures na Costa Oeste norte-americana uma frase mais ou menos assim: “X (mulher) sabia que, para poder vir a ter um papel num filme, teria de dormir com… e esse era apenas o primeiro passo”. Nunca duvidei que assim seria. Guardei por décadas a frase, ou o seu sentido, e recordo-a quando vejo filmes de Hollywood cheios de piedosa moralidade. Estranho é só hoje, em pleno século XXI, serem expostos publicamente comportamentos, mais do que ilegais, repugnantes.
Emma Thompson disse sobre o caso Weinstein que ele “está no topo da escada de um sistema de coacção, depreciação e ‘bullying’”. Nada de novo, portanto? Estranho é que a indústria – a de Hollywood – que tanto verbera Donald Trump pela sua linguagem sexista e predadora, assim revele tão extraordinária hipocrisia, ao só agora assumir, e porque foi publicado num jornal, os podres da sua elite. É como uma sala de baile luminosa, com espelhos e alcatifas reluzentes, sob a qual caves sombrias escondem camadas infindáveis de cadáveres e porcaria.
E agora, como sempre, de um extremo vai-se passar directamente ao oposto. A caça às bruxas já começou. E nela virão de arrasto as bruxinhas do Halloween e os mascarados do Carnaval que estiverem no caminho, para além dos distraídos e daqueles que, por qualquer motivo, não mostrem um poderoso e constante repúdio por todos os comportamentos “suspeitos”. Será como se, por causa de um ou dois dentes podres, se extraísse a dentadura inteira.
Já começou: Kevin Spacey acabou de ser acusado de ter tentado seduzir o também actor Anthony Rapp, quando este tinha 14 anos. A cena passou-se há 31 anos durante uma festa em casa de Spacey, que tinha então 26. Rapp, agora com 46, resolveu falar “sobre os ombros das mulheres e homens corajosos que têm vindo a público” para fazer a diferença (“hopefully make a difference”). Spacey pediu desculpa se o que eventualmente fez (de que não se lembra) afectou o (então) jovem Rapp de alguma forma; e assumiu-se como homossexual, o que desencadeou a ira de muita gente, por essa “saída do armário”, no contexto em que é feita, contribuir para uma imagem dos homossexuais como predadores pedófilos.
E há a entrevista de Sandler, partilhada com Claire Foy e até Emma Thompson: três toques no joelho de Claire, num programa de televisão, chegaram para que chovam acusações de comportamento indevido e até abuso. Apesar de a visada ter emitido um comunicado a desmentir ter-se sentido incomodada e de um porta-voz de Sandler falar de gestos “amigáveis”, o mal está feito. Mas o que me levou a escrever este comentário, é a forma como o artigo do “The Sun”, que corre nas redes sociais, trata o assunto: mistura os três toques de mão de Adam Sandler com as décadas de predação sexual de Weinstein.
Spacey pode estar inocente ou não passar de um pedófilo merecedor de castigo; Sandler pode ter sido apenas tonto ou ter perdido a “tramontana”. Mas fazer de cada situação desta natureza, de cada gesto infeliz ou de cada caso de sedução mal sucedida, exemplos de perigosa predação, mais do que ridículo é criar um clima de suspeição generalizado. E é, paradoxalmente, relativizar os actos verdadeiramente criminosos como os de Weinstein.
Pior ainda é isto suceder na praça pública, no espaço dos media clássicos e dos digitais, nas redes sociais, sem julgamento nem piedade, tornando virtualmente cada acusação numa condenação antecipada. Há muito, há mais e há de mais.
A mão de Jérôme no joelho de Claire seria decerto colocada no índex dos novos censores.