Portugal está mesmo cosmopolita: esta semana teve um travo às zonas tribais do Paquistão. Para lembrar aos incautos que não somos afinal um país ocidental, com igualdade de direitos dos dois sexos, signatário da Convenção de Istambul (que pugna pelo combate à violência contra mulheres). Ou, já agora, um estado que dispense justiça (uma das suas principais funções) tanto a homens como a mulheres, em vez de dar pancadinhas nas costas aos machões valentes que batem nas de tamanho mais pequeno.

Joaquim Neto de Moura resolveu sancionar crimes de honra. Traduzo: os direitos de uma mulher, incluindo integridade física e autodeterminação sexual, são de menor valor que a ‘honra’ de um homem. Donde, mocadas são entendíveis e desculpáveis, venham elas. Quando há lapidações de mulheres nos países islâmicos, o mundo une-se zangado na tentativa de salvar a vítima. Mas Neto de Moura, todo contente, acha que afinal essas lapidações são um bom contexto cultural para Felgueiras de 2014, com serventia de atenuante de crimes. Isso e livros bíblicos escritos nas comunidades nómadas do Crescente Fértil há mais de vinte e cinco séculos. (Alguém se lembrou de lhe fazer um teste ao QI durante algum momento da carreira?)

Houve também uma juíza que acenou e calou. Sobre Maria Luísa Arantes parafraseio Madeleine Albright: o inferno tem um lugar especial para mulheres que fazem isto a outras mulheres.

Mas Neto de Moura é coerente na infâmia. Já tinha enxovalhado e insultado outra senhora por ser adúltera. Sendo que a senhora não era casada com o agressor, mas unida de facto, estava simplesmente a terminar uma relação e iniciar outra, e não vejo bem como pode existir adultério quando duas pessoas escolhem não fazer o contrato que estabelece o dever de fidelidade (o tal de casamento). Foi só para achincalhar. A ignomínia na duplicidade de critérios do juiz foi tanta que o adultério inventado garante que a senhora é mentirosa; já o companheiro, homem encantador que publicitou fotografias sexuais da vítima, mantém, segundo o juiz das trevas, a credibilidade.

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(Entendamo-nos. Adultério feminino não é mais grave que o masculino. Adultério é razão para divórcio, nem me choca se para pedidos cíveis de indemnização, mas jamais pode ser atenuante para violência ou outros atropelos. Como bem afirmaram os bispos portugueses.)

Não se pense que uma vida sexual irrepreensível de uma mulher é, com Sharia Moura, o bilhete para a Justiça. Um murro no nariz e uma mordidela a uma mulher com um parto há nove dias, portanto particularmente frágil fisicamente, com o bebé ao colo, já haviam sido desconsiderados. As mulheres são umas piegas.

Bom, este juiz é desprovido de noções de decência e um ser humano de qualidade questionável. Porém, é juiz de um tribunal superior, quiçá sempre com nota máxima na avaliação dos seus pares.

Não é caso único. O tribunal de primeira instância também suspendeu a pena aos dois homens que deram juntos mocadas na mulher indefesa. Um estudo da CIG de 2016, longo, com casos, revela como juízes atenuam, e atenuam, e atenuam nos crimes de violência doméstica. As considerações insultuosas sobre as partes que os juízes se permitem nas sentenças e acórdãos (nos vários crimes) são indignos. Desde logo porque não têm estatura moral para arrasar o caráter alheio.

O poder judicial – quando os casos são anónimos – passa sem escrutínio. Evidentemente há juízes justos, mas a classe é corporativa. Donde, a primeira tarefa é multiplicar o escrutínio exterior.

A comunicação social tem obrigação de vasculhar o que se passa nos tribunais e noticiar aberrações. Colocando o nome dos juízes, e fotografia, para uma justa responsabilização das suas decisões. E, calhando, censura social.

A CIG tem aqui uma importante missão. Que tal escrutinar as sentenças e acórdãos, elaborar um relatório anual sobre o tipo de decisões produzidas e publicá-lo, novamente com os nomes dos juízes das várias instâncias? É necessário medir se, em se tratando de crimes sobre mulheres, há maior número de absolvições. E, havendo condenação, se as penas são mais leves que nos crimes contra homens. Estes dados deveriam obrigatoriamente contar na altura da avaliação dos juízes e aquando da subida a tribunais superiores.

Digo há muito tempo que os juízes deviam ser periodicamente submetidos a testes psicológicos. Não era brincadeira. Alguém desprovido de empatia não é capaz de julgar o que quer que seja que envolva pessoas e vidas. Um enraivecido com o mundo vai vingar-se nos que lhe aparecem na sala de audiências. Um juiz abandonado pela mulher provavelmente será hostil às mulheres nas audiências. Uma juíza assaltada por um membro de uma minoria é bem capaz de não ser totalmente isenta perante outro membro dessa minoria. Machistas (dos dois sexos) e racistas devem ter um big brother a vigiá-los.

Juízes não decidem só com a lei. Nem são seres etéreos, imaculados (lembram-se do copianço generalizado no CEJ? Recordam-se de Noronha do Nascimento?), imparciais. Como toda a gente, julgam com os preconceitos, afinidades ou antipatias. Quanto mais desatentos estiverem a esta norma da condição humana, piores juízes são. Tem de haver um organismo independente – do governo e dos tribunais – que lhes valide a capacidade psicológica.

A formação é essencial. Os que julgam crimes violentos têm de saber que as reações durante e depois dos eventos traumáticos são idiossincráticas e inesperadas. A memória de trauma não é uma memória jornalística. Há abundante literatura científica e não se desculpa que juízes, com tanto poder, não atualizem conhecimentos nem sejam avaliados a espaços. A capacidade de julgar não se esgota no conhecimento do direito penal e processual.

Por fim, é a hora do poder político. Por um lado, tribunais e juízes exercem dentro de um quadro legislativo que é responsabilidade parlamentar. Por outro, a permissão da continuidade da violência, e sobre quem, também é política.