Em Santa Teresa, uma das zonas boémias do Rio de Janeiro, há um pequeno graffiti que diz “Um dia as ideias voltarão a ser perigosas”. O que me surpreendeu foi o tempo verbal. Em toda a história houve ideias, ideias-bússola de ações políticas. Umas boas, que foram sobrevivendo na prática (ainda que passíveis de crítica permanente), não só pelo seu mérito na organização social e na felicidade humana, mas porque houve quem se batesse por elas em revoluções, contrarrevoluções e guerras. Outras ideias más. Ainda outras absolutamente terríveis. Fracassaram, mas não sem antes provocaram sofrimentos que pelo menos eu, ainda hoje, não tenho experiência de vida nem imaginação para qualificar.

Isto vem a propósito do episódio violento deste fim-de-semana em Charlottesville, uma pequena cidade na Virgínia onde ideias desta última espécie irromperam pelas ruas. O pretexto foi aventar-se a possibilidade de tirar a estátua do General Robert E. Lee, um comandante da Confederação na Guerra da Secessão. Foi o gatilho necessário para que saíssem à rua representantes de pelo menos três grupos distintos – a alt-right, neonazis, supremacistas brancos – vindos de vários cantos dos EUA e com um mesmo objetivo: reclamar a América para si, mostrar uma vontade inquestionável de expugnar todos os grupos étnicos não brancos, prometendo para isso usar todos os meios necessários.

Se houvesse dúvidas quanto às suas intenções, bastava ver o documentário da HBO, “Charlottesville: Race and Terror”, disseminado pela Vice News, em que a jornalista Elle Reeve assiste à preparação da manifestação, acompanha em direto os confrontos com manifestantes anti extrema direita, e entrevista antes, durante e depois vários ativistas, especialmente Christopher Cantwell. Ficamos a saber quem são os inimigos imaginários: os judeus, os negros e os comunistas. Ou os “judeus comunistas”, ou os “negros criminosos” ou o “lixo antibranco e antiamericano” ou “os degenerados nos países brancos” que estão a promover uma “limpeza étnica na América”. E podia continuar a citar epítetos, mas estes já são suficientes para se perceber a medida do ódio. E que estas ideias não só correspondem a uma leitura distorcida de realidade, como têm um potencial de violência como há muito não se via do outro lado do Atlântico. Mais: os seus ideólogos estão a criar um movimento civil de união da extrema direita que, dizem com orgulho, está a sair das páginas da internet para a rua. Chama-se Unite the Right (Cantwell é o porta-voz). Os membros do movimento estão armados até aos dentes. Não há caras tapadas, nem nomes fictícios. E que este movimento já fez uma vítima mortal, num atropelamento propositado. E por acaso foi só uma. Podiam ter sido mais.

Ora noutro momento histórico, um acontecimento destes daria direito a declarações imediatas de condenação das mais altas patentes da esfera política. Seria, possivelmente, classificado de terrorismo doméstico. Far-se-iam identificações dos membros perigosos (o que na verdade não sabemos se aconteceu ou não). Diz-se pela imprensa que nada disto teria acontecido se não fosse a eleição de Donald Trump e o seu discurso xenófobo, que cria condições favoráveis a estes acontecimentos. Mas mais grave do que criar um momento histórico que facilita o desenvolvimento deste tipo de movimentos é desresponsabilizá-lo depois dos crimes cometidos.

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Trump demorou dois dias a reagir. E quando o fez, fê-lo com grande relativismo (que em política significa associar o significado de um acontecimento a um contexto – histórico, cultural — atenuando-lhe o sentido de aprovação ou condenação). Foi “um dia horrível”, disse. Mas há bons e maus dos dois lados. Há quem só quisesse evitar a remoção da estátua. Disse também que havia contramanifestantes de esquerda radical (eu diria, pelo que vi e li, mais inventada que real). A verdade que é Trump levantou uma espécie de fantasma do Macarthismo em que muitos parecem estar dispostos a acreditar: quem ameaça a América é a esquerda e não a direita. Dê por onde der.

Mas não é. Quem ameaça a coesão social é a Unite the Right que quer um país etnicamente uniforme. Uma utopia, que como todas as utopias, é profundamente perigosa. Cria, como em todos os radicalismos, um espaço para pertencer a quem não pertence a lado nenhum. E um espaço para radicalizar pessoas moderadas, zangadas como a sua situação económica e social, e se sentem seduzidas pela criação de um bode expiatório.

Sempre houve bolsas de radicalismo nos Estados Unidos. A expressão “supremacia branca” é conhecida de todos os que estudam a América. Mas as ideias “voltam a ser perigosas” quando o presidente não as trata com a gravidade que têm. Quando as relativiza. Ao abster-se de condenar veementemente os acontecimentos, Trump abriu uma caixa de Pandora. Agora vamos ver que demónios saem lá de dentro.