Não gosto de hipocrisias e não estou obrigado às regras do sistema judicial. Por isso não tenho dúvidas, como julgo que a maioria dos portugueses não tem, que José Sócrates enriqueceu de forma ilegítima, beneficiando de uma complexa teia de que vamos conhecendo os pormenores pouco a pouco.
Na verdade, nem estou surpreendido. Desde o tempo em que começou a assinar projectos no concelho da Guarda para clientes que nunca falaram com ele, e quando ainda era apenas um técnico na Câmara da Covilhã, que se conhecia o padrão. Aquilo a que fomos assistindo ao longo dos anos foi apenas uma progressiva alteração da escala (e da gula). Vimos todos os que tínhamos os olhos abertos. Vimos nós e viram, porventura com mais detalhe, aqueles que trabalharam com ele mais de perto, mesmo que muitos ainda hoje assegurem que não viram nada, nunca ouviram nada, nunca leram nada, nunca suspeitaram de nada.
Adiante, que esse não é o ponto essencial deste texto deliberadamente escrito antes de se conhecer a acusação (seja ou não ela entregue até ao final desta semana). Quero sim explorar o tipo de cultura política e institucional que facilita a construção de teias como a que tem sido revelada pela Operação Marquês. E essas teias são as que medram quando os agentes económicos dependam dos agentes políticos. Tal como são as teias que florescem quando as instituições independentes são fracas e se cultivam dependências e compadrios.
Olhemos para os diferentes palcos onde surgiram os casos referenciados não apenas na Operação Marquês, mas também nos processos gémeos que envolvem o Grupo Espírito Santo, a Portugal Telecom e a Caixa Geral de Depósitos. Notemos como no conjunto dessas empresas se teceram cumplicidades que visaram reforçar o poder dos principais actores e obter benefícios particulares, sem escrúpulos na utilização de meios públicos para fins privados e até na definição de prioridades políticas em função dessas estratégias (de que um exemplo paradigmático é a “estratégia venezuelana” que arrastou muitas outras empresas portuguesas, como o Grupo Lena, e de que acabamos de abrir mais um alçapão, agora relativo à passagem de milhares de milhões de euros por offshores).
Quando José Sócrates se candidatou a primeiro-ministro o programa eleitoral do PS (que fui reler, um exercício que não deixou de ser bastante curioso a esta distância) não levava ninguém ao engano. Mesmo fazendo profissão de fé na economia de mercado, escrevia-se, por exemplo, que o Governo deveria promover “novas áreas de criação de emprego” e “a eficiência do investimento e das empresas”, tal como devia criar com o sector empresarial “uma parceria estratégica com vista à descoberta de novas oportunidades”.
Nada disto se desviava ou desvia da cultura dominante: em Portugal sempre se achou que o Estado deve dar uma mão às empresas, as empresas sempre gostaram de se encostar ao Estado. Como não se desvia da cultura dominante a ideia de que quem ganha as eleições pode ocupar o Estado e “mandar” no país, sendo até muito apreciada a “autoridade” (a que se acrescenta, para temperar memórias mais agrestes, o qualificativo de “democrática”), algo que José Sócrates exercia sem pudor e sem limites.
Por isso é bom recordar que o verdadeiro “assalto ao castelo” começou pelo assalto à Caixa Geral de Depósitos com a nomeação da administração Santos Ferreira/Armando Vara, uma decisão que fez logo uma vítima: Campos e Cunha, o ex-ministro das Finanças de Sócrates que lhe fez frente e acabou por ser levado à demissão. Passada essa “contrariedade”, a verdade é que poucos mais lhe fariam frente nos seus anos triunfais.
Depois da Caixa Geral de Depósitos o “assalto” prosseguiu com a conquista do BCP, abalroado com a ajuda de accionistas que a Caixa financiou e que, depois, colocaram na administração Santos Ferreira e Armando Vara, ou seja, os que os tinham financiado.
Ao mesmo tempo ia-se forjando uma aliança crucial com o grupo Espírito Santo e com Ricardo Salgado. O primeiro momento chave dessa aliança foi a forma como o Governo de Sócrates, e a CGD de Armando Vara, ajudaram os Espírito Santo a manterem o controle da Portugal Telecom durante a OPA da Sonaecom. Outros momentos de grande cumplicidade se seguiriam, até à intervenção final do primeiro-ministro na desastrosa operação de compra da Oi, um negócio político intermediado por São Bento e pelo Palácio do Planalto, um negócio que acabaria por levar à destruição da PT tal como a conhecíamos.
Entretanto o Governo ia escolhendo os investimentos que queria ou não queria acarinhar. Foi a época dos famosos PIN, os “projectos de potencial interesse nacional”. Foi o tempo em que centenas de milhões de euros foram canalizados para investimentos desastrosos que hoje pesam nas “imparidades” da Caixa, do BCP e, claro, do antigo BES. Em PIN’s como os da La Seda, em Sines, da Pescanova, em Mira, ou de Vale do Lobo desapareceram – literalmente: desapareceram – milhares de milhões de euros. Só na área do turismo já havia, no início de 2009, 3,5 mil milhões de euros em risco. O hoje muito falado projecto de Vale de Lobo (por causa da Operação Marquês) chegou a incluir (numa versão anterior, é certo) a megalomania de construir uma ilha artificial, prodígio de delírio. Mas há mais, muito mais, sendo que muitos desses investimentos eram financiados pela Caixa mesmo quando promovidos por empresas do grupo Espírito Santo, nomeadamente quando se tratou de alimentar as PPP rodoviárias que eram o alfa e o ómega do modelo de desenvolvimento do “animal selvagem”.
Finalmente não faltaram as aventuras internacionais, com a Venezuela à cabeça e José Sócrates a passear-se de braço dado com Hugo Chávez e seguido por uma corte de empresários atraídos por “encomendas de Estado” que quase sempre acabaram em nada ou em mais ilusões e mais dívidas.
Há mais na Caixa do que imagina. Oito negócios polémicos do banco do Estado
Nada diz contrariava os hábitos do regime, que durante muitos até aplaudiu o “reformista” que só sabia “pensar positivo” e a quem “nunca faltava energia”. Esses hábitos já tinham alimentado noutros governos pequenos, médios e grandes roubos, mas agora a novidade era a aliança cúmplice dos vários pretendentes a “donos disto tudo”. E depois que tudo ruiu (levando o país atrás) o que hoje fazemos é, como naqueles passatempos infantis, juntar os pontos e a começar a ver o quadro geral de uma teia que, sejamos honestos, pode crescer anos a fio perante a indiferença geral – ou melhor, perante a indiferença quase total do país, que a mim não me pesa a consciência pois sempre denunciei esta concentração de poderes e de interesses.
Quantos protestaram quando a Caixa Geral de Depósitos foi ocupada? E quando o BCP foi tomado de assalto? E quando o Governo manobrou nos bastidores para impedir que o marcado funcionasse na OPA da PT? Ou quando este tentou utilizar a PT para comprar a incómoda TVI? Ou ainda quando os reguladores independentes, como o da energia, foram afastados? Que vozes se ouviram quando a Entidade Reguladora da Comunicação Social se comportou como obediente guardião do dono? Quem se indignou quando Sócrates vetou o primeiro negócio de venda da Vivo pela PT para depois impor o catastrófico negócio da compra da Oi? Quantos levantaram a voz quando os PIN foram utilizados para passar por cima de planos e regulamentos?
Podia continuar por aí adiante, mas a verdade é que pouco ou nada, em todo este activismo, chocava com os hábitos nacionais e o conforto de um país que se sentia (que se sente?) mais confortável no abraço de um Estado tentacular do que com a liberdade e a responsabilidade do risco e da concorrência. Pelo contrário, pois ainda em Julho de 2010, quando o país já estava a ser sugado pela espiral que terminaria no pedido de resgate, o actual primeiro-ministro apelava a que os socialistas pusessem os olhos no exemplo de combatividade, determinação, coragem e inconformismo de José Sócrates. Nessa altura ainda a maioria dos comentadores alinhava no mesmo coro. Eu tenho memória – e o Google também.
O socratismo levou pois aos limites o dirigismo e a concentração de poderes, funcionando como uma espécie de estádio superior do socialismo num país que convive bem com isso – que até aprecia o estilo e os objectivos (e por isso é pobre e atrasado). Já o que José Sócrates fez depois em cima do sistema que construiu é, como sabemos, um caso de polícia. Mas a verdade é que o terreno estava bem adubado, tal como o país estava bem anestesiado.
É por isso que é tão importante ligar os pontos todos, não apenas aqueles que a Procuradoria anda a investigar. É por isso que é mesmo necessário saber o que aconteceu com os empréstimos irrecuperáveis da Caixa, aqueles que todos iremos agora pagar e que não querem que os deputados vejam. Assim como é importante conhecer o que se passou com o dinheiro que andou a vir e a ir para a Venezuela e a sua empresa de petróleos com passagem pelo Panamá.
Siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957).