Dada a importância que considero ter o tema que abordei no meu artigo da semana passada, foi com especial agrado que fui recebendo o amplo feedback gerado pelo mesmo. Confrontado com a impossibilidade de dar seguimento a todas as questões levantadas, concentrar-me-ei em três. A primeira é o reparo de que exagerei na minha crítica aos abusos fiscais do Estado. A segunda tem a ver com a explicação da relação existente entre o aperto da malha tributária e os abusos do fisco. A terceira diz respeito às causas profundas do problema e nomeadamente à sua relação com o excesso de despesa do Estado.
Terei – como argumenta João Miguel Tavares na sua resposta no Público – exagerado no meu artigo da semana passada e negligenciado que todos deveríamos defender uma via intermédia? Não creio. Louvo João Miguel Tavares e todos quantos, como ele, dão conta publicamente dos abusos da máquina fiscal. A minha discordância, como procurei explicar, é com a falta de associação entre esses abusos e os princípios e regras que são hoje estruturais no funcionamento do sistema fiscal português. Por muito louvável que seja, de pouco adiantará denunciar publicamente más práticas se não se atacam as causas dessas más práticas.
Reconheço sem reservas que nem tudo foi mau na evolução da máquina fiscal nos últimos anos. Por exemplo, a implementação de vários mecanismos de cruzamento interno de dados permitiu reduzir a evasão de forma significativa. Essa implementação deveria ter sido acompanhada de regras mais apertadas para o acesso e uso da informação pelos funcionários da Autoridade Tributária, mas não considero que haja uma objecção de princípio a esses mecanismos de cruzamento interno de dados. O mesmo já não se pode dizer de grande parte dos restantes meios empregues na perigosamente celebrada estratégia de aperto da malha fiscal, sendo que o fundamental é compreender que os abusos do fisco não acontecem por acaso.
O que se relaciona com a segunda questão: a relação entre o aperto da malha e os abusos do fisco. A associação entre ambos os fenómenos, como bem realçou Luís Aguiar-Conraria em discussão recente sobre o tema, pode ser explicada recorrendo a conceitos básicos de estatística: ao minimizarmos a probabilidade de ocorrência de erros de Tipo I, aumentamos a probabilidade de cometer erros de Tipo II. À medida que a máquina fiscal se torna mais eficiente, o trade-off torna-se cada vez mais acentuado. Por exemplo: ao disparar notificações de dívida a torto e a direito, um dos efeitos é sem dúvida reduzir a probabilidade de deixar dívidas fiscais reais por cobrar; mas um outro efeito é o de fazer notificações por dívidas não existentes, com as gravíssimas consequências que daí decorrem para os contribuintes afectados e para a economia do país.
O problema em Portugal assume contornos particularmente gravosos e ofensivos dos mais básicos direitos dos cidadãos porque, como oportunamente salientou Nuno Garoupa na mesma discussão, o aperto da malha fiscal não foi acompanhado de quaisquer melhorias estruturais nos mecanismos de recurso e verificação disponíveis para salvaguardar os contribuintes relativamente a erros do fisco. A reforma dos tribunais administrativos e fiscais é uma das muitas que continua por fazer e assiste-se a uma impunidade generalizada relativamente aos erros e abusos praticados pela máquina fiscal do Estado. À excepção de uma pequena minoria com recursos e poder suficientes para defenderem adequadamente os seus interesses, a generalidade dos contribuintes encontra-se assim indefesa perante a ditadura fiscal.
Num sistema em que há incentivos directos aos funcionários para maximizarem a receita e a perseguição aos contribuintes por todos os meios disponíveis, não deve constituir espanto que os abusos se multipliquem. Mesmo admitindo que esses incentivos são aceitáveis – o que é discutível tanto no plano ético como no da gestão pública – eles só deveriam ter sido implementados se acompanhados de mecanismos igualmente fortes para penalizar os abusos cometidos. Mas, além do erro crasso de gestão pública de não o ter efeito, a sua aplicação efectiva exigiria também que os tribunais administrativos e fiscais funcionassem adequadamente e em tempo útil o que infelizmente está muito longe de acontecer.
Termino com uma breve abordagem à terceira questão: as causas profundas dos abusos do fisco. Considerando que o PSD liderado por Pedro Passos Coelho ganhou as eleições com um discurso (vagamente) liberal e que governou os últimos quatro anos coligado com o CDS que se auto-proclamava “partido do contribuinte”, como foi possível chegar à lastimável ditadura fiscal vigente? O excessivo peso do aumento de impostos (por contraposição a redução da despesa) no esforço de consolidação orçamental é sem dúvida parte importante da resposta. Mas seria obviamente injusto culpar apenas PSD e CDS. Afinal, foi um governo do PS que deixou o país à beira da bancarrota e, além disso, as tendências destrutivas que estão na base da propensão para o saque fiscal têm raízes profundas no sistema político português. Não creio por isso que o assunto seja iminentemente partidário, ainda que seja naturalmente político.
Nas actuais circunstâncias do país, quem defende mais Estado e mais despesa pública está necessariamente – mesmo que jure e porventura até esteja convencido do contrário – a defender mais opressão fiscal. Sem prejuízo da desejabilidade de introdução de reformas no sistema fiscal e judicial, só contendo a despesa pública é possível reduzir de forma sustentável a voragem da máquina estatal por receita.
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa