A reflexão já acabou? E depois da reflexão pode escrever-se o quê? E sobre o quê? À cautela, sobre nada de concreto, que a imprecisão das leis é inversamente proporcional às multas que as acompanham.
Não sei contudo se devemos acabar com o dia da reflexão pois esta nossa idiossincrasia legislativa é o símbolo de uma tendência: a tendência sem-sem.
Na vida e nas páginas dos jornais todo aquele que se diga disponível para “viver sem” ganha uma aura de líder espiritual. E candidatos a gurus não faltam. Mediaticamente o denominador comum a todos esses seres que protagonizam a radiosa experiência do “viver sem” é o sorriso e o equilíbrio. Assim investidos deste banho lustral numa razão telúrica algures inscrita nas profundezas da Terra, devidamente maiusculada para o efeito, garantem-nos esses auto-denominados libertadores saber o melhor para as nossas vidas.
Aliás, a acreditar no que por aí se escreve, nunca se viu gente tão equilibrada quanto os pressurosos protagonistas dessas renúncias tratadas pelos jornalistas como verdadeiras experiências místicas. Salta-lhes felicidade e razão por todos os poros.
A Catalunha ou parte dela quer viver sem a Espanha e logo todos somos compelidos a sentir a urgência dessa dita libertação. A autarca de Paris, Annie Hidalgo (à semelhança de tantos outros autarcas que vivem fechadinhos na sua bolha dos bons bairros e das viaturas de serviço) quer obrigar os demais a viverem sem carros e quem não partilhar dessa sua intenção quer destruir o planeta.
O japonês Fumio Sasaki cuja editora o diz do movimento minimalista, quer viver sem nada em casa. Ou seja admite um colchão desdobrável, uma pequena caixa de madeira e uma secretária. De imediato lhe chamam libertador e logo surgem pessoas dispostas a seguir-lhe o exemplo. Ou a dar um ainda mais exigente como acontece com um tal senhor Hiji, minimalista radical “que não deixa nada no seu corredor. Não tem um único caixote do lixo e restringe os seus pertences ao estritamente necessário — um frigorífico, uma panela de cozer arroz e um forno micro-ondas.” A citação foi retirada dos textos que em Portugal divulgam o livro sobre este modo de viver que permitiu ao senhor Sasaki perceber “finalmente, o que era ter liberdade.” (Imagine-se que ninguém gostava de levar tralha para casa, como livros idiotas, e logo os trabalhadores da editora do senhor Sasaki iam conhecer os dias livres do desemprego num ápice.)
Na verdade, basta apresentar o rótulo “sem” e de imediato soam campainhas benfazejas. Nos supermercados qualquer produto que se apresente sem isto e sem aquilo vê o seu preço multiplicar-se. A proliferação dos que não têm isto mas têm aquilo tornou a simples aquisição de um iogurte num momento de introspecção: será que iogurte sem gordura mas açucarado é melhor que aquele outro que se diz sem lactose mas com açúcar de cana?
Não acaba aqui o dilema das escolhas que nos vão libertar: temos o pão sem glúten, as natas e a manteiga sem gordura (de que serão feitas as natas magras?) e até o leite ficou sem as vacas e nasce agora das plantas. Pretender alimentos com tudo aquilo que eles continham antes deste despojamento conceptual é praticamente impossível. E a cada libertação outra se sucede sendo que a última tendência nesta matéria é o regresso ao Paleolítico ou mais propriamente ao que se designa como dieta Paleo não sei se com bifes de mamute incluídos ou não.
Acreditem, há sempre alguém disposto a mostrar-nos como éramos mais felizes se nos libertássemos de algo que temos como essencial.
Nos últimos tempos tenho seguido com interesse e desvelo a vida de Marie Cochard, uma jornalista francesa que resolveu prescindir do frigorífico. Desde que tomou essa decisão, garante-nos Marie Cochard, a sua vida não tem parado de melhorar: poupa dinheiro e ajuda os pequenos produtores porque compra tudo em pequenas porções aos pequenos comerciantes… – e acrescento eu promove a indústria dos pequenos alguidares pois os pequenos legumes são conservados sob uma película de terra e as pequenas cenouras em areia, a manteiga num pote (pequeno obviamente) com água – mas no fim, afiança ela, a família sente-se revigorada. Não sei se com a perspectiva da sopa azedar ou de, na falta dela, serem convidados para jantar em casa de alguém que não prescinde de um bom frigorífico cheio de caixas e caixinhas para o que der e vier.
O mundo dos sem-sem é além de infinito uma espécie de quebra-cabeças entre opções que se excluem entre si. Por exemplo, temos aqueles que excluem o fogão. Sendo que este grupo por sua vez se divide entre os que excluem o fogão como um símbolo dessa passagem terrível na artificialização das nossas vidas representada pela descoberta do fogo e outros simplesmente porque não querem fogões. Entre estes últimos há a destacar os que prescindem do fogão mas não desse ícone da leviandade capitalista que é a máquina de lavar louça pois é aí que cozinham. Não, não estou a alucinar: alguns sem-fogão colocam tudo nuns frascos que colocam na máquina de lavar louça donde no fim do programa de lavagem (com ou sem detergente é um assunto que apurarei mais tarde pois também há os que abominam os detergentes) sai tudo devidamente cozinhado.
Naturalmente temos os sem electricidade, os sem água, os sem máquina de lavar roupa (note-se contudo que também há quem a utilize para cozinhar), os sem compras, os sem gastar dinheiro (estes últimos é mais sem gastar o dinheiro próprio e viver à conta do alheio), os sem carne, os sem peixe e, por fim mas não por último, os sem homens. Festivais sem homens e transportes públicos sem homens tornaram-se agora na reivindicação mais moderna proveniente dos mesmos lados que vivem enfanicados e queixosos porque ainda há espaços onde não estão equitativamente representados todos, todas e tod@s.
Por mim, a coisa resolve-se facilmente: se é sem não quero. Cada sem que nos vai libertar disto e daquilo traz uma lista de com isto e aquilo que transformará a nossa vida numa ditadura. Como bem se vê na Catalunha, nos autocarros com espaços só para mulheres ou na hora de jantar.