Há uns tempos, estava eu e o meu colega Miguel Portela a analisar uns dados sobre o Mercado de Trabalho em Portugal para perceber melhor a origem das desigualdades salariais entre homens e mulheres, quando nos apercebemos que dentro de alguns sectores sujeitos a contrato colectivo de trabalho, para a mesma categoria profissional, os homens ganhavam mais do que as mulheres. Estranhámos: como era possível que essa desigualdade não violasse o contrato colectivo? Com certeza que nenhum sindicato aceitaria isso. A nossa intuição dizia-nos que os dados tinham de estar errados.

Rapidamente, percebemos que o que estava errada era a nossa intuição. Havia mesmo contratos colectivos onde estava plasmada nos números a diferença salarial entre homens e mulheres. Por mais óbvia que fosse a inconstitucionalidade de tal contrato, tanto quanto era do nosso conhecimento, nenhuma trabalhadora tinha ainda suscitado a inconstitucionalidade de tal convenção laboral.

Não foi, assim, uma surpresa quando, ontem, li uma notícia no Público, assinada por Manuel Carvalho, com o título “Igualdade de género nos salários do calçado”. Nela, é descrito que o novo contrato colectivo do sector de vestuário e calçado ia levar a uma aproximação dos salários de homens e mulheres no exercício das mesmas funções e com a mesma classificação profissional.

O artigo foi perfeito para dar o mote a um debate que moderei sobre como fazer o percurso profissional de saltos altos. Nesse debate, participaram três mulheres empreendedoras que eram empresárias de sucesso e/ou altos quadros nas suas empresas.

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Surpreendentemente, o surto de sarampo que apareceu em Portugal deu-me outro artigo para lançar o debate. Como se sabe, a parvoíce de não vacinar as crianças abriu a porta a que a doença reaparecesse também em Portugal, onde estava praticamente extinta. Esse artigo, de Henrique Raposo, culpa as mães por esta epidemia. Em todo o artigo, Raposo alega que as crianças não são vacinadas porque as mães não querem. São as mães que são caprichosas, são as mães que partilham artigos pseudo-científicos cheios de factos falsos, é a mãe que não vacina os filhos que faz perigar as outras crianças, são as mães que não percebem que as doenças foram extintas precisamente porque todos são vacinados, etc.

Estando eu totalmente de acordo com tudo o resto que Raposo escreve, nomeadamente sobre a irresponsabilidade e o egoísmo de quem não vacina as suas crianças, um artigo perpetua a ideia de que é à mulher que cabe cuidar dos filhos e que os homens nem voto na matéria têm. E, como o dia tanto tem 24 horas para os homens como para as mulheres, se as mulheres têm o tempo e a cabeça ocupados com os filhos, é ao homem que sobra tempo e disponibilidade mental para investir na carreira.

Como imaginam, foi o artigo perfeito para a inevitável pergunta sobre se a maternidade é um obstáculo à progressão na carreira. Uma das mulheres falou do seu caso pessoal. Já tinha um cargo importante numa multinacional quando teve o primeiro filho. Ao fim dos 4 meses de licença de maternidade (vigentes nos anos 90), ela e o marido concluíram que a criança era demasiado nova para ir para um infantário ou para ficar à guarda de outras pessoas. E, assim, em conselho de família, decidiram que o pai iria pedir licença sem vencimento até a criança fazer um ano de idade. Ficou a mulher com o tempo livre necessário, bem como a paz de espírito, para poder fazer as viagens todas que a sua empresa exigia. Naturalmente, não sei se este homem leu ou não o artigo de Raposo, mas quase que aposto que, se o ler, se vai perguntar que raio de pai é que entregaria à mãe a decisão exclusiva sobre assuntos tão importantes como a vacinação das crianças.

Como se sabe, nos últimos anos, os governos têm legislado abundantemente sobre estes assuntos. Foram introduzidas quotas numa série de cargos políticos (como nas listas de deputados), foram introduzidas quotas nas direcções das entidades reguladoras e serão introduzidas quotas nos conselhos de administração das empresas cotadas. Mais recentemente, apareceram notícias a respeito da intenção de o governo legislar sobre desigualdades salariais, penalizando empresas que paguem menos às mulheres.

Estas políticas só fazem sentido se partirmos do pressuposto de que as mulheres e os homens são igualmente produtivos e disponíveis para a empresa. Se, pelo contrário, recair sobre as mulheres o grosso do trabalho familiar, é utópico pensar que nas empresas são igualmente produtivas. Super-mulheres, só nos filmes, lamento. Legislação que incentive as empresas a tratar paritariamente homens e mulheres terá de ser acompanhada por legislação que incentive homens e mulheres a dividir paritariamente as restantes responsabilidades. Obviamente que gravidez, parto e amamentação são exclusivas da mulher. Tudo o resto deve ser, pelo menos durante uns anos, igualmente dividido pelo pai e pela mãe (foco-me apenas neste tipo de família porque estou a discutir desigualdade de género). Seja a licença de parentalidade, sejam as dispensas de trabalho para tomar conta de familiares.

E, como todos sabem, a legislação apenas pode fazer parte do caminho. Não havendo mudança de mentalidades, toda a legislação pode ser contraproducente, criando ainda mais injustiças e desigualdades. Quando, num outro artigo, Henrique Raposo escreve que “as mães da [sua] geração (…) não podem continuar a ter a liberdade de levar a maternidade para o tempo das cavernas”, parece estar no bom caminho para mudar de mentalidade. Só falta mesmo perceber que a melhor forma de a mulher perder toda essa “liberdade” é partilhando com o homem essa responsabilidade. A mulher só sai das cavernas se o homem sair com ela.