Sentimentalmente, diremos todos que não tem preço. O problema é que os cuidados de saúde têm um custo. E sendo os recursos escassos, coloca-se o problema económico do custo de oportunidade: para salvarmos uma vida, quantas teremos de sacrificar?
O que se está a passar com o tratamento para a hepatite C ilustra bem o problema subjacente [curiosamente, usei este caso há três meses atrás para ajudar a explicar o conceito de custo de oportunidade aos meus alunos de Microeconomia]. Um tratamento custa, antes das recentes negociações, cerca de 42 mil euros. Ora, 42 mil euros permitiriam, por exemplo, financiar os seguintes tratamentos ou gastos sociais:
– 14 bypasses coronários
– 140 operações às cataratas
– 6900 refeições em cantinas escolares
– 2 salários anuais de um professor contratado do 2ª escalão do básico ou secundário
E dado que os recursos são escassos, optar por um pode implicar abdicar de outro. Outros problemas similares colocam-se. Por exemplo, quanto dinheiro devemos investir para reduzir a sinistralidade rodoviária em 1%? 1 milhão de euros? Mil milhões de euros? Estas decisões, envolvendo vidas, requerem contudo uma análise económica. E, para o fazer, temos de avaliar o valor de uma vida. Quanto vale uma vida?
Existem diversos métodos em economia da saúde para tentar estimar o valor de uma vida. Um dos primeiros, entretanto abandonado, era o de estimar os cash-flows futuros que aquela pessoa geraria. O método era não apenas incerto, extremamente variável, como iníquo: a vida de um rico valeria bem mais do que a vida de um pobre. Uma outra abordagem mais indirecta, o valor estatístico de uma vida (VSL), recorre a um proxy por forma a avaliar qual o valor que aquela sociedade em particular atribui a uma vida. Por exemplo, admitamos que a sociedade está disposta a investir mil milhões de euros para reduzir a sinistralidade rodoviária em 1%. Ora, se 1% corresponder a mil vidas, uma vida valerá então cerca de 1 milhão de euros.
Esta análise preliminar permite aferir quanto dinheiro deverá estar adjudicado à saúde. Mas coloca-se outra questão: dentro da saúde, e dado que os recursos são escassos, que tratamentos privilegiar? Uma forma de avaliar isto é calculando o número de QALYs, ou quality-adjusted life-years, que vale um tratamento. Por exemplo, admitamos que um ano vida de uma pessoa normal vale 1 QALY, e que uma pessoa com hepatite C vê a qualidade de vida reduzida em 50%, ou seja, 0.5 QALYs. Se o tratamento para a hepatite C permitir recuperar esses 0.5 QALYs durante 30 anos, então o valor desse tratamento será de 0.5 vezes 30, 15 QALYs. E o tratamento oncológico para uma criança? Se lhe permitir viver 60 anos e recuperar 0.75 QALYs, então vale 45 QALYs.
Posto isto, há que combinar ambos os indicadores: primeiro, perceber quanto dinheiro quer a sociedade afectar à saúde como um todo, o que implica responder à questão de quanto vale uma vida. Depois, perceber que tratamentos serão preteridos. Isto porque, e usando o exemplo supra-referido, o custo de um tratamento oncológico poderia permitir, por exemplo, salvar três pacientes com hepatite C (admitindo que o tratamento oncológico custa cerca de 150 mil euros).
A decisão política de adjudicar o máximo possível de recursos não pode estar desconectada da realidade económica: para o fazer, de onde se retiram? Da educação? Da defesa? Das transferências sociais? Aliás, é até possível que o custo de financiar todas as necessidades de cuidados de saúde seja superior ao próprio produto do país. Uma discussão sobre o assunto requer ponderação e racionalidade. Fugir a uma discussão que racionalize o SNS implicará um dia forçar outra que o racione, como aliás acontece. As filas e listas de espera são formas indirectas de racionamento que se prendem com a falta de recursos.
Pessoalmente, não tenho qualquer dúvida que a vida vale todo o nosso esforço. E por essa razão em particular, o Estado deve primar pela disciplina orçamental e rigor na alocação do Orçamento de Estado. Quando financiamos uma peça de Brecht de um qualquer encenador que jura que a cultura deve ser financiada por todos nós, podemos estar a reduzir os recursos disponíveis para mais um tratamento que possa salvar mais uma vida. E sacrificar a vida de uma criança é um preço demasiado elevado a pagar.
Professor da Universidade do Porto, doutorando em economia da saúde