Vou citar, sem ironia mas com o mesmo cinismo de quem assim falou: “o tempo não está para radicalizações, mas sim para compromissos”; “não é tempo de luta de trincheiras, mas de debate democrático, leal e aberto”; “espero que o ressentimento seja revogado sem delongas”; e ainda “é necessário virar a página da incapacidade de construir pontes e estabelecer acordos”.

As citações são do discurso de Augusto Santos Silva que encerrou o debate do programa do Governo de António Costa. E cito-as, repito, sem ironia pois é difícil conseguir, ao mesmo tempo, pedir o impossível e fazer tudo para que o impossível seja mesmo impossível.

De facto, não é possível pedir que não haja ressentimento quando se fez batota ao jogo, alterando as suas regras a meio – e é esse o sentimento de grande parte dos portugueses, mesmo de muitos que não apoiaram nem apoiam a coligação. É que não é possível querer compreensão quando se disputou umas eleições com base em regras não escritas, mas assumidas pelos eleitores, e depois de perder essas eleições se mudaram essas regras numa altura em que os eleitores já não podiam repensar as suas opções de voto.

Ao mesmo tempo, não se pode pedir o fim da luta de trincheiras quando se mantém um discurso de campanha eleitoral, cheio de acidez e de remoques. Mais: o partido que fugiu a qualquer acordo durante a anterior legislatura, os políticos que, dentro do PS, minaram a negociação de 2013 e levaram Seguro a roer a corda no último minuto, os dirigentes que rasgaram sem pudor o único acordo feito entre a anterior maioria e actual minoria alcandorada a São Bento (o acordo do IRC), não têm moral e muito menos autoridade para vir agora falar de entendimentos.

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Mas há ainda pior, e isso não desaparecerá tão cedo da política portuguesa: quem cava trincheiras, como o PS cavou nos últimos quatro anos, trincheiras que agora transformou em abismos, não pode falar de estabelecer pontes. Porque quebrou todo e qualquer princípio de confiança.

Como podemos confirmar ao longo do debate, se isso ainda fosse necessário, e como estamos a ver todos os dias, os dois partidos de extrema-esquerda estão, no fundamental, onde sempre estiveram. No caso do PCP, este não se moveu sequer um milímetro, e a acção da CGTP está aí a prová-lo. Quem se chegou a eles foi o PS, e por vontade própria.

É bom que não se mistifique a história. Esses dois partidos não estavam fora do chamado “arco da governação” por uma qualquer conspiração anti-democrática das restantes forças políticas: estavam de fora pela mesma razão por que votaram sempre contra todas as revisões constitucionais. O nosso consenso constitucional não é entre o centro-esquerda e a extrema-esquerda, como se pretende fazer crer – o nosso consenso constitucional é demoliberal desde as revisões de 1982 e 1988, e é pró-europeu em todas as revisões que vieram a seguir. Mais: o nosso consenso político é, com as variações próprias do pluralismo ideológico, o de querermos viver numa economia social de mercado e com uma democracia representativa. Ninguém expulsou esses dois partidos desse consenso – eles é que se assumem como anti-capitalistas, eles é que contestam a “democracia burguesa”, eles é que têm estatutos onde se assumem como revolucionários. Nada disto foi inventado agora, nada disto mudou depois da serôdia e disparatada “queda do muro” de que agora se fala.

É verdade que os votos de todos os portugueses valem o mesmo, sempre valeram, e foram votos de portugueses que sempre elegeram deputados que, pelas suas escolhas políticas, pela sua retórica e pela sua permanente contestação das regras do regime democrático, nunca entraram em soluções de governo. Foram esses deputados sempre quiseram estar fora do consenso que era e é largamente maioritário em Portugal, e nunca ninguém impediu que os portugueses, por convicção política ou por voto de protesto, os elegessem. Ou seja, ninguém os pôs de fora, eles é que verdadeiramente nunca quiseram entrar dentro sem ser impondo as suas condições. Como impuseram agora a um PS enfraquecido por uma derrota eleitoral pesada e inesperada.

Na verdade nem sequer necessitaram de “estar dentro” para imporem as suas condições, pois o Bloco não entrou para o governo e o PCP muito menos. Juntos com o PS não tiveram sequer o nível de consenso necessário a votarem em conjunto uma moção de confiança, pois não se entenderiam sobre o texto a votar. O seu único consenso, o único que continua a valer, é o da coligação que diz não a um governo dos mais votados. O seu único consenso não foi ainda o da coligação que diz convictamente sim a Costa e ao seu Governo.

É natural por isso que o PS saiba que caminha sobre terreno movediço. E que se incomode por estar notoriamente nas mãos do PCP e das suas imposições. O que tem uma inevitável consequência: mais tarde ou mais cedo, o PS quer poder virar-se para a sua direita invocando o “interesse nacional”. Isso sucederá quando as coisas se complicarem (e podem complicar muito) e quando a extrema-esquerda lhe quiser tirar o tapete, algo que só dependerá da escolha da melhor oportunidade e pretexto.

Daí o cínico discurso de Augusto Santos Silva e o coro dos comentadores sempre prontos a seguir os socialistas. Daí esta exigência à direita de que mostre o “sentido de Estado” que eles próprios nunca tiveram e continuam sem praticar. Daí a imensa arrogância de pretender ter a colaboração de quem teve mais votos e tem mais deputados no dia em que se virem sem os votos e os deputados “instrumentais” que lhe serviram para assaltar o poder.

Esta legislatura abre num clima de tensão e divisão que não foi criado pela coligação – foi criado por quem se recusou a ter qualquer negociação séria, antes ensaiou uma palhaçada sem nome nos dias que se seguiram à sua derrota nas urnas, um clima envenenado que foi aprofundado por quem chegou ao poder mudando as regras do jogo depois de este já ter terminado.

É por isso que o ressentimento não vai desaparecer – e, na verdade, é bom ter memória em política, para não ser ingénuo duas vezes. É também por isso que o Governo não poderá contar com qualquer compreensão por parte dos que foram os mais votados a 4 de Outubro de 2015, mesmo que sem maioria.

Se nesse dia os eleitores tivessem ido às urnas com a consciência de que iam escolher entre dois blocos políticos diferentes, como vão na Dinamarca (país de que tanto se tem falado, mas com tanta ignorância), saberiam que estavam a eleger deputados para ter como primeiro-ministro o candidato preferido, e previamente indicado, por cada bloco político. Nessa altura ninguém estranharia que o PM não fosse o líder do partido mais votado, mas sim o líder do bloco mais votado. Mas não foi isso que sucedeu. Não era essa a escolha que estava em cima da mesa dos eleitores a 4 de Outubro – era a escolha omissa, a opção escondida, a possibilidade que apenas se sussurrava de forma sibilina. Por isso não foi sobre ela que se fez campanha e que se trocaram argumentos nos debates pré-eleitorais. E é finalmente por isso que António Costa sempre será um chefe de governo com autoridade diminuída.

No dia em que o superior interesse do país exigir um realinhamento de alianças, não vejo como tal possa ser feito sem ser voltando à casa de partida. Idealmente, realizando eleições nas quais os eleitores já saberiam o que estariam a escolher, isto é, não iriam ao engano. Acessoriamente, trocando de governo, pois nesse dia António Costa só terá consigo uma coligação negativa já sem disfarces. Será o dia em que não terá autoridade para esperar ser ajudado se gritar por socorro – pelo contrário, terá antes o dever de assumir o seu logro e ir oferecer ajuda a um novo governo, a um governo formado a partir do maior grupo parlamentar. Isto se acreditar mesmo que existe um interesse nacional, se não for apenas um jogador de poker político.

Não se deve pois esperar que a direita esqueça ou perdoe o golpe baixo de que resultou o actual Executivo costista. Deve é exigir-se-lhe calma e sangue-frio. Se estiver realmente convicta de que as políticas preconizadas no remendadíssimo Programa de Governo são erradas, então tem de ter a paciência de esperar pela prova dos factos, mesmo que isso demore (há dinheiro nos cofres, há uma torneira aberta no BCE), mesmo que o país tenha de pagar um preço por isso, pois é assim que se joga de acordo com as regras das instituições. Não é a teoria da vacina, é apenas a serenidade e firmeza indispensáveis para mostrar que sabe ater-se à legalidade (e este governo é legal), que sabe distinguir entre a legitimidade formal (que este governo tem) e a legitimidade moral (que não tem), que se manterá fiel aos seus princípios e confia no juízo, a seu tempo, dos portugueses.

Pessoalmente estou convencido que sofreremos muito, como país, com as consequências das políticas erradas que aí vêm e que são, só com a diferença de terem menos aeroportos e TGV’s, as mesmas que fizeram com que Portugal já fosse um problema antes dos problemas financeiros de 2008, como se mostra num estudo realizado por economistas que uma certa esquerda gosta de citar e truncar. É que, como sublinharam Luís Aguiar-Conraria e Francisco Assis, ambos de esquerda, mas sem sofrerem da cegueira dominante, os nossos problemas vinham detrás e vinham de uma dívida pública que já então era galopante (e de uma dívida privada também fora de controle). Regressar às receitas desse passado não poder deixar de dar o mesmo resultado, mesmo dez anos passados. É duro, mas é assim.