Richelieu chocou a Europa ao professar que “O homem é imortal, a sua salvação está no além. Já o Estado não tem qualquer imortalidade, a sua salvação é agora ou nunca”. Estas palavras encapsulam a famosa raison d’était, que levou a França a apoiar os pequenos principados alemães, protestantes, contra o poderio católico dos Habsburgos. O Cardeal não hesitou em demarcar a sua fé das relações internacionais, subjugando a primeira a um outro princípio: a defesa dos interesses da França.

Numa época em que tudo se discute na praça pública, não deixa de ser espantosa a quase total ausência de uma reflexão pública sobre a raison d’état portuguesa na questão da independência da Catalunha. É uma ameaça ou uma oportunidade para Portugal? Em que sentido é uma coisa e em que sentido é outra?

O debate por cá não poderia estar mais longe da doutrina de Richelieu. Sem nunca abordar a questão dos interesses portugueses, a discussão enredou-se em subjetivismos espúrios. Nas redes sociais, muitas posições parecem decorrer de uma partidarite por procuração, seguindo um silogismo infantil que tem por premissa a militância a favor de um partido nacional, como o Bloco ou o CDS, que por sua vez evoca uma simpatia por um partido análogo espanhol, como o Podemos ou o PP, e que desagua na defesa ou repúdio do referendo catalão. Outras vezes parece ser o amiguismo ou antipatia que determinam a tomada de posição. Evocam os laços de amizade com uns quantos catalães (quase sempre independentistas, os mais trendy) ou uma antipatia em geral pelo povo daquela região/nação (qualificação que depende dos preconceitos de quem opina). O despautério argumentativo é tanto que, por vezes, parece que até a clubite ajuda à decisão, estando os simpatizantes portugueses do FC Barcelona de um lado e os do Real Madrid do outro.

Mesmo em círculos mais ponderados, o discurso tem resvalado para o agora sempre presente abismo esquerda/direita. Quem está mais à esquerda tem defendido a tendência separatista/anarquista, quem está mais à direita a tendência centralista/conservadora. Os argumentos usados por cá causam espanto, com caricatas invocações que vão de Afonso Henriques à dívida de gratidão nacional para com a revolta de 1640 na Catalunha, passando por arrevesados argumentos constitucionais e pela defesa da paulada estatal para repor (?) a ordem (?) pública.

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Dir-se-á que nada de novo. Basta ver o debate sobre Trump, Merkel, Venezuela, Cuba e a burca. Como refere o psicólogo Paul Bloom, no seu “Against Empathy”, vivemos numa época em que a moralidade está firmemente ancorada em paixões primárias. E o referendo catalão é ótimo objecto das mesmas.

E, no entanto, é evidente que o debate merece mais. Está em causa a continuidade do Estado Espanhol como o conhecemos, o nosso único vizinho, com quem e contra quem nos definimos como nação, em guerra durante séculos, cuja última vez que ponderou invadir Portugal (desconfia-se) foi há meras dezenas de anos, e cujo poderio económico, que é tanto uma bênção como uma ameaça, pode facilmente dominar Portugal. Nesta discussão, só por estultícia se pode omitir os efeitos para Portugal a curto, médio ou longo prazo, das várias possibilidades em aberto.

É certo que não há tradição de debater a política externa portuguesa, o que é tanto uma causa como uma consequência da exiguidade dessa política, que raramente vai além da relação com os países de língua portuguesa, da integração na Europa e da defesa de casos pontuais e algo espúrios (como a eleição de António Guterres). Sem hábito e sem enquadramento, o espaço público português, já de si um ótimo reverberador da opinião estrangeira, chega ao cúmulo de debitar juízos (colhidos no The Guardian ou publicação internacional análoga) sobre os efeitos da independência catalã em outras regiões europeias como a Escócia, Gibraltar, os Flamengos, etc., sem nunca comentar a questão do ponto de vista da nação estrangeira mais interessada: Portugal.

Naturalmente, as autoridades nacionais e os “responsáveis” têm seguido a máxima wittgensteiniana de calarem-se sobre aquilo de que (publicamente) não podem falar. Faz parte das regras. A este propósito, ouvi há vários anos um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros defender, à porta fechada, a coesão da Espanha com o argumento de que mais vale ser o parceiro júnior do “matulão” ibérico do que ser só mais um no meio de outros quatro ou cinco Estados ibéricos, todos mais ou menos equivalentes. Pareceu, na altura, uma opinião pouco fundamentada e, porventura, receosa, que não leva em conta o trunfo português da unidade nacional. Mas também é verdade que custa descortinar a vantagem, pelo menos imediata, de uma Espanha em convulsão.

Perante a possível reconfiguração da Península, importa analisar o que Portugal tem a ganhar e a perder. Note-se que não é preciso ser tributário da realpolitik de Bismark, Richelieu ou dos atenienses de Tucídides para encarar este tema de frente. É sempre possível, de resto, manter a postura idealista nas relações internacionais, que está mais em consonância com o zeitgeist. Mas convém perceber que há coisas mais importantes, na perspectiva portuguesa, do que a simpatia pelo Podemos ou o apreço por Filipe IV.

Advogado