Há uma história antiga, conhecida de todos, sobre o debate decisivo das Presidenciais norte-americanas de 1960 entre JFK e Richard Nixon: ouvido na rádio, Nixon ganharia; quem viu o debate na televisão, deu a vitória a Kennedy. A diferença foi a postura, a compleição frágil e o semblante pálido do primeiro face à tez bronzeada de John, a segurança deste e o olhar nos olhos a câmara (“eye contact”) comparados com a dispersão do olhar de Nixon. JFK venceu o debate e venceu as eleições, a caminho do seu trágico destino.
A imagem, sempre a imagem. Também a audição do português Cristiano Ronaldo no passado dia 31 de Julho, perante a juíza Mónica Gomez Ferrer no tribunal de instrução de Puzuelo de Alarcón, pode ser interpretada de forma distinta, consoante sejam tidas em conta as revelações feitas pela imprensa espanhola nos dias que se seguiram ou as imagens gravadas e emitidas no passado domingo em imagens “exclusivas” da CMTV.
Não sei, nem pretendo nesta crónica avaliar exactamente que interpretação será essa num e noutro caso. Podemos dizer que as notícias publicadas logo após a inquirição e nos dias seguintes permitiam um campo amplo de especulação e subjectividade, beneficiando talvez o jogador em função da sua popularidade; e que as imagens televisivas mostram um Ronaldo nervoso, acossado, a repetir declarações emotivas – “fiz tudo bem”, “nunca tive intenção de enganar ninguém”, “não posso esconder nada” –, num registo, visual e sonoro, descredibilizante e comprometedor.
Mas não é esse o problema principal.
Grave é o facto de estas imagens terem vindo a público. A audição era à porta fechada. Quem abriu a porta? Com que direito, com a autorização de quem, por ordem de quem se tornou pública a gravação das declarações de Cristiano Ronaldo?
Não sei, não investiguei nem tenho os meios para investigar a forma como a televisão CMTV obteve estas imagens; será provavelmente uma gravação do tribunal, para uso dos magistrados, decerto não destinada a ser tornada pública. Mas foi.
São imagens exclusivas, diz a televisão em causa, isto é, segundo a definição do dicionário (vg. Infopédia), únicas, pessoais, privativas; mas privativas de quem, se eram apenas destinadas a alguns – a juíza, os advogados, o jogador – e foram entregues a quem as quiser ver? À mórbida curiosidade pública. Legitimamente? Não sei, mas duvido.
Um dos melhores jogadores de futebol do Mundo, por acaso português, é exposto, na minha opinião, de forma lastimável, fragilizando-o. Autorizou-o Ronaldo? E se não o autorizou, que responsabilidade terá quem assim o expôs – e com que consequências?
Há limites. Devia haver limites. Devassa da intimidade, prejuízo incalculável, direitos de personalidade e dignidade humana – quanto valem? O direito do público a conhecer a vida dos famosos justifica, ou sequer permite, a violação dos seus direitos, incluindo o de não serem julgados na praça pública quando a justiça deve ser discreta e precautória? E se, por força destas imagens, CR7 for condenado? Se cumprir pena (não creio)? Mas se for, quem é responsável, quem será responsabilizado?
Há limites.
“Se não me chamasse Cristiano Ronaldo não estaria aqui”. A força destas palavras que, no dia 31 de Julho e seguintes correram mundo como afirmação de orgulho, aliás em grande parte verdadeira, esbateu-se. A resposta da juíza Gomez Ferrer no tribunal de Pozuelo – “Já se sentaram aí muitas pessoas anónimas” – de despicienda no rescaldo da revelação de excertos do interrogatório a 31 de Julho tornou-se, perante as imagens que vimos, central no processo: do orgulhoso tom da frase pouco restou face à imagem inquieta do acusado.
Não sei, porque não sei, se Cristiano Ronaldo cumpriu ou não integralmente as suas obrigações fiscais face à lei espanhola. Mas sei que tem direito – como qualquer cidadão – a um julgamento justo, que respeite os seus direitos, nomeadamente os da reserva, da confidencialidade, da equidade, da preservação da boa imagem.
Cristiano não é caso único. São vários os jogadores investigados (ou já condenados) em Espanha, pelo mesmo motivo, mas nenhum – com a possível excepção de Messi – provoca o frenesim mediático que o rodeia. As razões são óbvias: a notoriedade do melhor jogador do Mundo, as verbas em causa (quase 15 milhões de euros em direitos de imagem, Messi era acusado de sonegar 4 milhões), o clube a que pertence, o país de que é nacional.
Mas também por isso, pela gravidade da acusação e pela pena de prisão em que incorre (sete anos de prisão efectiva), seria bom que não se tornasse ainda mais difícil a defesa de Ronaldo; que pague o que deve, se deve, e seja responsabilizado pela falta, se for sua, sem dúvida. Mas que a sua condenação não resulte de actos ilegítimos, ou no mínimo imorais, de órgãos de comunicação, ademais portugueses. Ronaldo é, goste-se ou não dele, goste-se ou não de futebol – e do seu futebol – um ícone nacional, conhecido e admirado no Mundo inteiro. Quantos portugueses mais o são?
Messi foi condenado a 21 meses de prisão com suspensão de pena por ter chegado a acordo com a justiça espanhola. Se reconhecer os factos e pagar voluntariamente a multa, como a mudança de advogados pode indiciar, é provável que Ronaldo seja condenado a prisão com pena suspensa, à semelhança do argentino (e de outros, como Di Maria ou Ricardo Carvalho).
Mas não deveria ser Portugal – e uma televisão portuguesa – a lançar mais achas para a fogueira.
É que há limites. Ou devia haver…