O que veio Mario Draghi fazer à reunião do Conselho de Estado, a convite do presidente da república? Isto: dizer o que já ninguém, na classe política portuguesa, pode dizer: que o país precisa de merecer a confiança dos seus credores, e ainda de se adaptar para competir nos mercados globais. Não é novo nem é complicado, mas por cá, ninguém o pode dizer. Não o pode dizer o presidente da república, porque ficaria logo exposto como uma reedição de Cavaco Silva. Mas também não o pode dizer a oposição, para não correr o risco de parecer agarrada ao “passado austeritário”.
Se havia um impasse em Portugal, esse impasse aumentou. As visitas do FMI de 1978 e de 1983 criaram a opinião de que reformas em Portugal, só se viessem de fora, em avião, como os bebés que antigamente chegavam de cegonha. A adesão à CEE e ao Euro ainda tiveram essa inspiração: sem pressão externa, nada feito. Mas mesmo não sendo possível fazer nada, ainda assim era possível dizer alguma coisa. Dizia-o, por exemplo, o Dr. Medina Carreira, com bastante sucesso na televisão e até nas livrarias. Dizia-o também a Dra. Ferreira Leite, naquela encarnação em que foi líder do PSD.
Esses tempos passaram. Agora, nem já falar se pode. A fidalguia do PSD, segundo relatava o Expresso, treme com a ideia de acabar como Ferreira Leite, quando teve de desempenhar o papel de fada malvada da austeridade. Em 2009, contra um Sócrates que prometia um défice de 2,2% (foi de 11,2%) e se propunha pôr Portugal a crescer “ajudando” as famílias e as empresas, Ferreira Leite teve um momento de atrevimento: sugeriu que o resultado poderia ser uma crise como a de 2002-2003, quando tinha sido preciso conter despesas. Foi logo comparada a Salazar, acusaram-na de ter sido ela, com a sua austeridade, a provocar a recessão de 2003, e perdeu as eleições. Desde então, a Dra. Ferreira Leite teve, muito naturalmente, o cuidado de não cair noutra igual. E os correligionários que deixou para trás parecem tentados pelo seu exemplo. De facto, para quê falar? Para serem acusados de “radicais”, ou mesmo de “traidores à pátria”? O que é preciso é dar “esperança” e mostrar “novidade” – “novidade” que, curiosamente, parece pressupor, no caso do PSD, o retorno à “social-democracia” inventada em 1974 para fintar o COPCON.
Mas não é só a direita que está fascinada pela luxúria da circunspeção e do silêncio. São também os companheiros de estrada do governo. Lembram-se de quando o PCP culpava o euro por todas as aflições do país, e vendia o abandono da moeda única como uma mezinha infalível? Lembram-se de quando o BE tratava a “reestruturação da dívida” como a primeira de todas as prioridades, de tal modo que nem valia a pena conversar se o assunto não fosse a dívida? Tudo mudou. Assim que o PCP e o BE assinaram as suas posições conjuntas com António Costa, não foi só a austeridade que chegou ao fim. Foi também o euro e a dívida como temas de arrelia e de querela. O PCP e o BE não desejam de modo nenhum perturbar uma governação em que depositaram todas as esperanças de reforço partidário. Tal como o PSD e o CDS têm medo de parecer “ideológicos”, o PCP e o BE receiam passar por “irresponsáveis”. O resultado é este: um país onde não há nada para discutir.
E é assim que chegámos a Mario Draghi a pregar aos peixes no Conselho de Estado. Deixemos que seja ele a lembrar a confiança que não se pode perder, deixemo-lo recordar, sozinho, as reformas a fazer ou as “medidas adicionais” que ainda não conhecemos. O primeiro-ministro explicou logo que não é nada connosco. Como é óbvio.
Rui Ramos assina esta coluna às terças e às sextas.