1. Começando pelo óbvio. José Sócrates tem razão: todos os arguidos presumem-se inocentes até se verificar uma condenação transitada em julgado. Logo, o próprio Sócrates só deixará de ser inocente se for acusado e se o último tribunal que o julgar considerá-lo culpado dos crimes que lhe são imputados na Operação Marquês: corrupção passiva para ato ilícito, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. Sócrates fez bem em recordar essa verdade incontestável em qualquer Estado de Direito.
Mas falhou em toda a linha no resto da sua pequena aula de Ciência Política – até Hobbes, Espinosa e Rawls devem ter dado voltas nos caixões com tanta deturpação do seu pensamento. Aliás, está cada vez mais parecido com um secretário-geral do PCP: a cassete é sempre a mesma e ontem, numa suposta palestra sobre Justiça e Política, nem a alusão enjoativa ao chumbo do PEC IV falhou.
Misturando opiniões sobre o momento politico com apelos à revolta do poder executivo e legislativo contra o poder judicial, manipulando pormenores processuais do seu caso com descrições genéricas de supostas violações do Estado de Direito e tentando ocultar da opinião pública o seu claro interesse pessoal em denegrir o sistema judicial que está escrutiná-lo de forma democrática e legal, Sócrates acabou por passar uma mensagem que não desejava: ajudem-me a ser inocente.
Pediu ajuda aos militantes do PS de Vila Velha de Ródão para legitimarem o seu ato falhado de regresso à vida política e constituírem o seu exército contra a Justiça, defendendo assim uma espécie de Justiça popular que tanto critica na comunicação social.
Pediu (uma vez mais) ajuda ao PS e a António Costa para reformarem o poder judicial e aumentarem o grau de fiscalização que o poder político tem sobre os juízes, procuradores e as diferentes polícias de investigação criminal.
E pediu ajuda à futura aliança de esquerda, tentando, como bom camaleão político que é, enquadrar-se no novo contexto político da frente de esquerda com elogios e agradecimentos, imagine-se, a Francisco Louçã.
Vamos ser claros. A única pessoa que mistura justiça com política tem um nome: José Sócrates. E fá-lo não por um interesse público mas sim em nome de um interesse bem particular: a sua inocência judicial.
O exercício de mistificação e manipulação que tivemos a infelicidade de assistir em direto nas três televisões de informação chegou ao ponto de José Sócrates comparar-se a Luaty Beirão e de aludir à sua posição de ex-preso (cá está mais uma semelhança com o PCP), como se tivesse uma moral superior face aos restantes políticos portugueses para criticar um caso de direitos humanos. O objetivo é sempre o mesmo: afirmar que a Operação Marquês é um processo político.
Mais uma vez impõe-se o contraditório dessa insinuação torpe. Nem a prisão de José Sócrates é um caso de direitos humanos nem é uma situação de delito político. Sócrates esteve privado da sua liberdade entre Novembro e Setembro porque foi constituído arguido de crimes económico-financeiros como corrupção passiva para acto ilícito, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. A sua detenção foi validada por um juiz de instrução criminal – que é o magistrado que zela pelas liberdades e garantias de todos os cidadãos. A sua defesa, e diversos cidadãos, interpuseram vários habeas corpus no Supremo Tribunal de Justiça e todos foram indeferidos. A sua defesa interpôs inúmeros recursos e apenas um saiu vencedor no Tribunal da Relação de Lisboa. Resumindo: a sua detenção foi escrutinada vezes sem conta por diferentes juízes e em todas as instâncias e nenhum juiz afirmou que foi preso ilegalmente. Apenas um coletivo deu razão à sua defesa sobre o prazo do segredo de justiça – e não sobre a prisão preventiva.
Alguém que compara a ação da justiça portuguesa ao escrutinar a origem da sua riqueza com uma prisão arbitrária de um ativista político que discorda da forma como o seu país é governado, só pode padecer de um terrível problema em perceber a realidade em que está inserido – e a sua própria circunstância. Já para não dizer que é um insulto a todos os que têm de lutar um pouco por todo o mundo pelos seus direitos cívicos e pela construção de uma verdadeira democracia que respeite as liberdades e garantias dos seus cidadãos. José Sócrates nunca teve de lutar pela sua liberdade política – está a lutar, sim, pela sua inocência num processo penal justo e democrático.
2. José Sócrates quis retratar-se com uma vítima de um quase Estado totalitário, recorrendo a vários exemplos judiciais para tentar demonstrar que a Justiça em Portugal não é democrática.
Nada de mais errado. O processo penal português é dos mais garantísticos a nível europeu e têm ocorrido reformas sucessivas nos últimos quinze anos que visaram a diminuição da prisão preventiva, a sua substituição por alternativas como a prisão domiciliaria com vigilância eletrónica, o acesso dos arguidos à prova durante os interrogatórios, o aumento das restrições do tipo de documentação a que a comunicação social pode ter acesso quando os autos são públicos em nome da privacidade dos arguidos, as restrições na divulgação de escutas telefónicas, etc.
O que também não deve ser esquecido é a tentativa do governo de José Sócrates de criar um foro especial para titulares e ex-titulares de altos cargos políticos. Isto é, e caso essa legislação tivesse ido avante, José Sócrates só poderia ser investigado pela Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça. Essa legislação não foi avante por causa da pressão do poder judicial e das críticas na Opinião Pública e na comunicação social – o tal poder oculto que quis sempre dominar, talvez para ser mais domesticável.
Já nessa altura, Sócrates não estava preocupado com o interesse público mas sim com o seu interesse particular de futuro ex-primeiro-ministro. Misturar estes dois interesses foi o que mais fez ontem.
Não, José Sócrates não está assim tão preocupado com o Estado da Justiça – se estivesse, podemos dizer que desaproveitou uma oportunidade de ouro durante seis anos para mudar o sistema judicial.
O que verdadeiramente o ex-líder socialista quis fazer ontem é outra coisa: atacar e responsabilizar os líderes do sistema judicial pelo desenrolar do seu processo.
Tal como os seus advogados estão entregar recursos hierárquicos junto da procuradora-geral da República, também José Sócrates quer ‘marcar’ Joana Marques Vidal para o futuro e responsabilizar Henriques Gaspar, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por tudo o que lhe aconteça. Em suma, José Sócrates quer destruir o sistema judicial que ousou investigá-lo.
José Sócrates é assim: nasceu para viver a guerra – e não para fomentar a paz.
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