Perante a acusação contra José Sócrates e Ricardo Salgado, a nossa oligarquia fecha-se em copas: temos de esperar pelo fim do julgamento. Na quarta-feira, alguém fez contas: o julgamento nunca começaria antes de 2019, não acabaria antes de 2025 e, com os recursos, o caso só transitaria em julgado aí por 2030. Não sei se será assim, mas há precedentes para tais vagares. Ora, se aplicarmos a regra, muito querida da oligarquia, de que não podemos pedir a um político uma palavra ou uma linha sobre o assunto enquanto o caso estiver a ser tratado “no lugar próprio”, isto significaria que o regime, confrontado com o maior escândalo da sua história, poderia fingir que nada aconteceu até pelo menos 2030. Como será o mundo daqui a treze anos? Vamos entender-nos: a coberto do processo judicial e da invocação perversa e imprópria de princípios constitucionais como a separação de poderes e de figuras jurídicas como a presunção de inocência, há quem espere reduzir a mais grave indignidade deste regime a uma questão de interesse meramente histórico.

Temos mesmo de esperar pela sentença? Não, por três razões. Primeiro, porque o princípio da separação, que salvaguarda a autonomia de cada poder do Estado, e a presunção de inocência, que garante os direitos do cidadão perante o Estado, não existem para condicionar a liberdade de expressão e impedir o debate público, fundado na opinião legitimamente formada pelos cidadãos a partir da informação disponível.

Segundo, porque aquilo que já foi admitido por José Sócrates em público é mais do que suficiente para uma crise de regime: Portugal teve um primeiro ministro cujas despesas pessoais eram secretamente pagas pelo administrador de uma das empresas que mais contratos obteve do Estado durante o seu governo. No mundo, tem havido grandes escândalos por muito menos. É preciso aguardar por 2030 para os nossos políticos terem opinião sobre isto?

Terceiro, porque este não é só um caso de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais. É um caso, segundo a acusação, de uma conspiração entre um primeiro-ministro e o presidente de um dos maiores bancos para controlarem o Estado, a economia e a comunicação social em Portugal. Sobre a corrupção, a fraude fiscal e o branqueamento de capitais julgará, em relação a cada um dos acusados, o tribunal. Mas sobre o suposto projecto de domínio político-financeiro e a aparente dificuldade das instituições para o prevenir, quem deve falar desde já, no que diz respeito ao regime, senão os políticos?

A razão da nossa oligarquia para se calar é óbvia. Há demasiada gente na política e nos seus arredores que fez carreira com um líder agora acusado de 31 crimes. Mas bastar-lhes-á aguardar pela sentença “com tranquilidade”? Não é legítimo pedir-lhes uma explicação? Por exemplo, nunca tiveram uma dúvida, quando sabemos que sempre houve suspeitas? A propósito dos abusos sexuais do produtor Harvey Weinstein, discute-se agora na América a “cultura de cumplicidade” que o teria protegido durante anos. Não deveríamos nós estar a discutir a “cultura de cumplicidade” que parece haver à volta da corrupção e do abuso do poder na democracia portuguesa? Uma cultura feita de indiferença ética, de comunhão na ganância e de um sentimento de impunidade alimentado, de alto a baixo, pela promiscuidade no Estado, pela dificuldade de provar estes crimes e por votações como as de Oeiras.

A justiça dirá se alguém merece multas e prisões; a política deveria dizer outra coisa: se alguém ainda merece a nossa confiança. Não podemos esperar por 2030. A História os julgará? Mas essa é a prerrogativa dos ditadores, como o general Franco, que, enquanto caudilho de Espanha, “só respondia perante Deus e a História”. É assim que os nossos oligarcas também já pensam: que só a História os poderá julgar?

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