Em Setembro de 2004, a revista Focus perguntou na capa como é que um político que não declarava outros rendimentos senão os de deputado fazia a vida de luxo de José Sócrates. Em Dezembro de 2015, em entrevista à TVI, Sócrates admitiu viver de “empréstimos” do administrador de uma das empresas com mais contratos com o Estado. Porque é que, para tanta gente que opina em Portugal, estas foram descobertas da última semana?

Que mudou? Segundo explicou Carlos César, a direcção do PS achou que a situação estava a “adensar-se”. E logo que o PS “aclarou posições”, deu-se o milagre: o país cego, surdo e mudo, passou de repente a ver, ouvir e falar. Eis como tanta gente teve em 2018 as dúvidas de 2004 e a indignação de 2015. Esta é a liberdade de espírito em Portugal: uma torneira que os dirigentes do PS abrem e fecham conforme a “densidade” dos casos.

O que temos aqui não é um mistério: é apenas uma nova demonstração de que, no nosso país, quem domina o Estado domina a opinião. Ora, nenhum outro grupo, no actual regime, mandou tanto tempo no Estado como os actuais dirigentes do PS. Desde 1995, quase sempre no governo, que fazem e desfazem carreiras, negócios, e instituições. A pouco e pouco, colonizaram o espaço público com quem lhes deve emprego e estatuto. A sua força pode-se medir por este pormenor: até há uns meses atrás, quem parecia mais em risco na Operação Marquês não era o acusado, mas a Procuradora Geral da República.

Agora, esforçam-se por tratar o caso Sócrates como um cromo para a troca com episódios de corrupção do PSD ou do CDS. Escamoteiam naturalmente o fundamental. Porque o que está em causa no dossier Sócrates não são apenas os delitos de que é acusado, mas o modo como esses delitos constituíam, segundo a investigação judicial, uma maneira de governar. Aliás, que significa a “densidade” que finalmente inquietou os ex-colegas de Sócrates, senão a percepção de que, à medida que as peças se encaixam, o que surge é um mecanismo político, e não apenas os pecados de uma ou duas pessoas?

Queixam-se ainda de que Sócrates está a ser aproveitado para criminalizar certas ideias. Mas este também é um caso ideológico. Sócrates não mandou calar Manuela Moura Guedes em 2009 apenas porque quis, mas porque podia. Se o Estado não estivesse metido em todos os negócios, se do governo não dependessem as maiores empresas e bancos, Ricardo Salgado teria telefonado menos ao “Zé”. Sócrates é o produto de um sistema, e esse sistema, se bem que usado e abusado por todos os partidos, corresponde à ideologia estatizante de alguns deles. Sim, quem quer mais Estado, quer mais Sócrates, porque com este Estado, era uma questão de tempo até que aparecesse um Sócrates.

Mas francamente, creio que estes esforços para equiparar Sócrates ao BPN, ou por distinguir entre o estatismo e a corrupção, são, da parte dos donos do regime e dos seus altifalantes, uma simples cortesia, para manter as aparências de um debate. Não tenham ilusões: os nossos amos e senhores tiveram um contratempo, mas acham que já o resolveram. Em Portugal, a sabedoria oligárquica diz que quem aumenta as pensões tem direito a tudo, incluindo a deixar arder o país. Purgar Sócrates do álbum de família tem até a sua utilidade: é preciso que algumas das caras mudem, para o sistema continuar na mesma. Vladimir Putin também de vez em quando manda prender um dos seus oligarcas, e até o MPLA, ao fim de quase quarenta anos, está a despejar a família Santos. Em momentos desses, quando o regime sacrifica um dos seus donos, há frequentemente um ambiente de carnaval, de aparente liberdade, como agora em Angola. Aproveitemos, porque essas fases não duram.

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