No momento em que escrevo, ainda não sei se o juiz Ivo Rosa irá ou não livrar José Sócrates de ser julgado por todos ou por alguns dos crimes de que foi acusado pelo Ministério Público. Ao contrário de vários dos meus contemporâneos, porém, nada disto me emociona muito: nem a decisão do juiz Rosa, nem a das instâncias judiciais que depois a avaliarão. Porque há uma coisa que já sei: José Sócrates nunca será confrontado com o que de mais grave fez enquanto chefe do governo socialista, e que não consistiu no aproveitamento do cargo para enriquecer, mas no projecto de poder que em 2009, ao director do Departamento de Investigação e Acção Penal de Aveiro, o procurador João Marques Vidal, pareceu configurar um “atentado contra o Estado de direito”.

Não, não estou a menorizar os crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais que agora o podem levar a julgamento. José Sócrates é o primeiro governante do país formalmente acusado pela justiça desde o marquês de Pombal, no século XVIII. Crimes desses, quando assacados a um titular de um cargo público, ameaçam de descrédito qualquer regime. Mas esses são crimes que poderiam ter sido cometidos por um qualquer particular ou, mesmo que praticados por um governante, ser apenas o resultado de ganância privada. Repito: seriam sempre uma desgraça numa democracia, a quem convém que os governantes sejam não apenas eleitos, mas de confiança e boa reputação. Mas há um outro tipo de abusos que só poderiam ser executados por um governante — crimes de natureza propriamente política, como o “atentado contra o Estado de direito” de que falou o director do DIAP de Aveiro. São esses que, até agora, nunca foram verdadeiramente discutidos no caso de José Sócrates.

A alegada corrupção de José Sócrates vai ser julgada, se for julgada, como uma prevaricação que se esgota na sua pessoa e na dos cúmplices que o Ministério Público lhe atribuiu e que também acusou. Mas quem recorda o governo socrático entre 2005 e 2011 e quem leu com atenção o que foi divulgado do processo da “Operação Marquês” percebeu certamente que o crime identificado e documentado pela justiça fazia parte do sistema de poder que José Sócrates, enquanto primeiro-ministro, tentou instalar no país. Sim, para haver corrupção, terá havido cobiça e desonestidade. Mas houve também, a englobar essa cupidez e falta de escrúpulos, uma vontade de dominar e de controlar que uniu o chefe do governo e os líderes de algumas das maiores empresas e bancos do regime. Quando em 2009 o então primeiro-ministro procurou usar a influência que tinha na PT para adquirir a TVI, o seu objectivo não foi proporcionar um negócio de que tirasse proveito pessoal, mas silenciar um canal televisivo então demasiado crítico do seu governo. Por isso, o director do DIAP de Aveiro falou de “atentado contra o Estado de Direito”. Não se tratava só de enriquecer: tratava-se de mandar, à custa da liberdade e dos direitos dos cidadãos. À justiça, neste momento, competirá julgar os actos de Sócrates e dos outros acusados do ponto de vista dos crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento. Mas à política deveria competir discutir e “julgar” à sua maneira um projecto de poder que pôs em causa a democracia e a liberdade em Portugal.

Para além de José Sócrates, está uma coisa mais vasta, que num determinado momento se identificou com ele, mas que não se esgota nele: uma certa maneira de governar, assente no domínio do Estado por uma facção, e na promiscuidade entre essa facção e as grandes empresas que o Estado criou e protegeu. Não, não se tratou de um simples caso de cobiça pessoal. Tal como a bancarrota que, há dez anos, obrigou o governo a pedir ajuda financeira internacional, não foi o resultado de simples incompetência ou de teimosia do primeiro-ministro, como nos querem fazer crer aqueles que gostam de repetir a história do desacordo entre José Sócrates e o seu ministro das Finanças. Também o desequilíbrio financeiro teve as suas origens num projecto de poder que promoveu a substituição de uma sociedade de cidadãos autónomos por uma sociedade de dependentes do Estado. Foi esse projecto que gerou ao mesmo tempo estagnação económica, défices de todo o tipo, e oportunidades, quando não mesmo razões, de corrupção.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Percebe-se perfeitamente porque é que convém ao regime julgar José Sócrates como um simples prevaricador particular, em vez de discutir o socratismo que começou antes de Sócrates e não acabou com ele. Ao reduzir o caso a José Sócrates, o regime está a poupar aqueles que com ele colaboraram, e que podem até ter desconhecido os crimes de que o ex-primeiro-ministro é acusado pelo Ministério Público, mas que não podiam ter ignorado a maneira como o governo tentou subverter as instituições ou limitar o espaço público. Sim, admitamos que não terão ouvido falar de Carlos Santos Silva e das suas entregas de dinheiro ao primeiro-ministro. Mas também nunca ouviram falar de Lopes da Mota e das suas pressões sobre os magistrados encarregados da investigação do “caso Freeport”? Nem da conspiração para calar o noticiário de sexta-feira da TVI?

Tratar tudo isto como um episódio isolado, produto dos lapsos de um indivíduo que por acaso foi primeiro-ministro, é uma grande tentação. Quem é  que quer reconhecer que, dez anos depois de Sócrates, somos governados pelos mesmos personagens que governaram com ele, e que se alguma coisa mudou, foi que estamos, enquanto sociedade, mais pobres e mais fracos, e eles, enquanto governantes, mais dominadores e mais implacáveis? A vulnerabilidade dos cidadãos perante o Estado, depois do agravamento constante do esforço fiscal e das devastações económicas do confinamento, é hoje muito maior. O seu desamparo e a sua incerteza também, com a campanha de policiamento da linguagem e de “cancelamento” importada dos EUA e animada pelos aliados de extrema-esquerda que os companheiros de Sócrates entretanto arranjaram. Vivemos num país desolado, em que a facção no governo, amparada pelo financiamento europeu e pela inquisição comunista e neo-comunista, exerce um poder como ninguém exerceu desde 1976.

O socratismo venceu, independentemente do que acontecer pessoalmente a Sócrates. É isso que explica a nossa história recente. A corrupção, a bancarrota e a divergência em relação à Europa não são azares. São efeitos de um sistema de poder que assenta no domínio do Estado sobre a sociedade, através de um bloco de clientelas eleitorais que é preciso alimentar à custa de endividamento, extorsão fiscal e cortes de investimento público. É claro que é importante averiguar se alguém abusou do poder para enriquecimento pessoal ilícito. Mas este é um detalhe de uma história muito mais grave e muito mais triste, porque é a da degradação de um regime, da decadência de um país e da morte das esperanças e expectativas de várias gerações.