A corrente campanha contra o ISIS é uma das janelas mais indiscretas sobre a alma ocidental. Nos EUA, o presidente Obama não pediu autorização ao congresso para intervir no Iraque e na Síria: preferiu supor que as licenças passadas a Bush em 2001 e em 2002 ainda estavam válidas (no caso da Síria, funciona a autorização de 2001 para atacar a Al-Qaeda enquanto responsável pelo 11 de Setembro, o que talvez explique a insistência do governo americano em “filiar” o ISIS na Al-Qaeda). Alguns constitucionalistas alarmaram-se com o que entenderam constituir um abuso do poder executivo. Mas o congresso não se mostrou interessado em discussões. Ninguém quer ir para as eleições legislativas de Novembro depois de uma votação sobre a guerra.

O presidente e os legisladores conspiram assim, à face do público americano, para evitarem comprometer-se. O plano para equipar os rebeldes na Síria foi discutido e aprovado em 5 horas – um recorde. Como notou então o senador Rand Paul, foi a maneira de evitar um debate completo sobre a guerra: “nesta casa, toda a gente está com medo, não do ISIS, mas do povo americano”. Na Inglaterra, resolveu-se tudo salomonicamente: o Partido Trabalhista decidiu só votar metade da guerra — no Iraque, mas não na Síria, a principal base do ISIS.

Este é o Ocidente dos défices e da dívida, da população a envelhecer, do crescimento económico anémico, da polarização política. Não acreditamos em soluções, nem nos compromissos necessários para, em democracia, tomar grandes decisões. Temos aqui a medida das mudanças dos últimos anos: aquando do 11 de Setembro, ainda se pretendeu não apenas liquidar Bin Laden, mas erradicar as “origens do terror”, “democratizar” o Médio Oriente. Hoje, não. Onde antes acreditava em tudo, o Ocidente passou a não acreditar em nada. Liquidar a Al-Qaeda? Aparece logo outra coisa pior, como o ISIS. Derrubar ditaduras, democratizar? É o caminho do caos.

Os vídeos dos refugiados nas montanhas e dos decapitados no deserto incomodam o público ocidental. É preciso fazer alguma coisa. Mas sem expectativa de fazer diferença. Vivemos uma época de “realismo”, que é uma maneira de conceber a fraqueza como se fosse uma habilidade: combate-se o ISIS, mas devagar, porque gostamos de pensar que a sua ameaça até serve para distrair o Irão e os seus aliados na zona.

Enquanto isso, no terreno, o ISIS reestabeleceu a escravatura, e explicou aos cristãos a sua peculiar teoria de multiculturalismo: “quebraremos as vossas cruzes e escravizaremos as vossas mulheres”. A questão é: quem, naqueles paragens, pode confiar nas potências ocidentais? No Afeganistão, os que se comprometeram com a ocupação pedem aos EUA mais uma oportunidade. Sem muita esperança: os EUA já se esqueceram do país, e não se lembrarão dele enquanto os Taliban não produzirem atrocidades televisivas.

Nada representa melhor este olhar fatalista do que a nova regra de ouro da guerra americana: tudo, menos “botas no chão”, isto é, infantaria. Guerra, só no ar: aviões, mísseis, drones. Quando muito, admite-se alguma “operação especial”, de tipo relâmpago. Mas nada de desembarques e de ocupações. As vantagens são óbvias: evitam-se debates, e baixam-se as expectativas. A guerra — remota, secreta e tecnológica — não existe na consciência pública, e nada se espera dela. Bush, com 140 000 homens no terreno e o projecto de uma pacificação democrática do Iraque, esteve sempre exposto. Obama resguardou-se com os aviões e a ideia de uma guerra longa e indefinida. Ao contrário do filme de Raoul Walsh, aqui toda a gente vai morrer descalça.

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