Fixem este número: 775%. Exacto. Ele não vem em nenhuma página do Orçamento do Estado mas é quanto, de acordo com os cálculos da PwC, aumentará a matéria colectável em sede de IRC dos rendimentos do alojamento local. Este aumento “sem precedentes”, acrescentam os técnicos daquela consultora na sua linguagem polida, “constituirá certamente um entrave/desincentivo a futuros investimentos numa fase em que esta actividade começava a explodir em Portugal”.
Em termos menos polidos, eu diria que é um tiro no porta-aviões de um dos poucos sectores que tem mostrado real dinamismo em Portugal, um dos poucos que tem puxado pelo economia. Se acrescentarmos a esta medida o famoso “imposto Mortágua” – que afinal começará nos 600 mil euros e não deixará de fora a habitação própria ou a casa na aldeia e meio arruinada da “herança indivisa”… – confirmamos a percepção de que, no Orçamento de 2017, o governo da geringonça andou à procura de tudo o que mexesse e ainda não fosse suficientemente taxado para ir buscar mais receita. Mesmo comprometendo a economia. Mesmo prejudicando a imagem externa do país, que tanto necessita de investimento estrangeiro. Mesmo criando novas injustiças fiscais.
Estes detalhes dizem bastante sobre as prioridades de um Orçamento que, de acordo com Mário Centeno, é “de esquerda”. De facto só pode ser de esquerda por olhar com desconfiança e desprezo todos os que criam e acumulam riqueza e, ao mesmo tempo, não fazem parte de nenhuma das corporações protegidas pela geringonça. Porque se quisermos falar de igualdade, então este orçamento é muito pouco de esquerda.
Basta ver dois exemplos. Primeiro: quem beneficia mais com as normas relativas a impostos e à segurança social? Resposta: os pequeno grupo de pensionistas que ganha mais de 7127 euros, pois ao desaparecer a contribuição extraordinária de solidariedade, desaparece o corte de 20% nas suas pensões que ainda se mantinha. Não sei se serão muitos ou poucos, mas são aqueles a quem saiu a taluda deste Orçamento. Segundo: e quem é que não leva aumento nenhum (ou quase)? Resposta: Os que recebem pensões inferiores a 275 euros, ou seja, os que estão no primeiro escalão das pensões mínimas do regime geral (destinado a quem tem menos de 15 anos de descontos), ou recebem a pensão social ou a pensão do regime agrícola. Porquê? Porque essas pensões mínimas foram aumentadas durante o governo de Passos Coelho. Poderia ser revanchismo se não fosse apenas trágico.
Podia dar mais alguns exemplos parecidos com estes dois, mas eles mostram bem o grau de hipocrisia quando se fala num orçamento para “combater as desigualdades”. Não, não é disso que se trata. O que temos é um Orçamento obrigado a seguir as regras europeias (pelo menos numa primeira análise), um exercício que abandonou o registo desafiador de Fevereiro passado, que tantos danos causou à reputação de Portugal sem ganho de causa efectivo. É sobretudo um exercício que procura aparecer como o mais bem comportado e ortodoxo possível, até porque é apresentado poucos dias antes da única agência de rating que ainda nos mantém à tona de água, a canadiana DBRS, fazer a sua tão temida revisão do nível de risco da dívida pública. Se este Orçamento procurasse ser uma espécie de segunda versão do “quantos são? quantos são?” que caracterizou as primeiras idas a Bruxelas de Mário Centeno, a geringonça podia acabar este mês, pois não sei como o Governo (e o país) sobreviveriam a um downgrading do rating da DBRS.
Face a esta realidade não surpreende que este seja também o Orçamento do newspeack orwelliano, em que o que é tem de ser apresentado como não sendo o que é. Vamos ao exemplo mais gritante, a falácia de que a sobretaxa do IRS vai ser devolvida gradualmente. Não vai, nem isso nunca podia acontecer. O que vai acontecer é que essa taxa vai diminuir e a única coisa que é gradual é a evolução dos descontos nos ordenados dos trabalhadores por conta de ontem. Basta ler o artigo 146º da lei do Orçamento, onde se escreve que “para os rendimentos auferidos em 2017, a sobretaxa aplicável observa o disposto na tabela seguinte” (a tabela da sobretaxa por escalões do IRS), sendo que no ponto anterior se escreve que as retenções na fonte são realizadas “às taxas aplicadas em 2016” e, essas sim, estão “sujeitas a um princípio de extinção gradual”. Por outras palavras: a sobretaxa mantém-se para todo o ano de 2017, os descontos na fonte nos salários dos trabalhadores por conta de outrem é que irão desaparecendo gradualmente. O resto é propaganda e mistificação.
Com este artifício de linguagem – em tudo idêntico com o tentado ao procurar que o perdão fiscal recentemente anunciado não fosse designado de perdão fiscal… – procura-se esconder o incumprimento de uma das promessas da geringonça, dizendo que foi só “meio incumprimento”. Tudo isto bem envolvido na nova língua de pau da governação, de que é exemplo supremo a mensagem no Youtube do primeiro-ministro que consegue a proeza de não explicar um só ponto do Orçamento e das suas opções, limitando-se a repetir frases feitas sobre os desígnios da actual maioria. Para dizer o que disse, bem podia ter ficado calado.
Esta estratégia tem componentes políticas de nenhuma subtileza – o aumento de 10 euros nas pensões dos reformados ocorrerá apenas em Agosto, ou seja, a tempo de receberem duas prestações da sua nova pensão antes de irem votar nas autárquicas – mas de elevado custo – os 187 milhões que esse aumento custará em 2017 transportará para 2018 um encargo anualizado de 400 a 450 milhões de euros. Se a geringonça quiser voltar a pagar esse encargo adicional com a sobretaxa do IMI (como gosta de alardear o Bloco de Esquerda), será que em 2018 vamos ver esse novo imposto mais do que duplicar? Não acontecendo isso, de onde virá o dinheiro para um sistema que necessita de ser reformado mas que nunca o será enquanto o Governo depender da extrema-esquerda parlamentar?
E assim chegamos ao que é, porventura, mais importante. Primeiro que há, de facto, alternativas à TINA (There Is No Alternative), mas que são piores. Segundo, que isso mesmo é admitido pela equipa de Mário Centeno ao desenhar perspectivas macroeconómicas que traduzem o fracasso da estratégia seguida em 2016, mas sem nunca assumir a viragem de rumo.
Comecemos por aqui. Como nota o Conselho de Finanças Públicas, o Governo mudou de trajectória: antes apostava no consumo privado como motor do crescimento económico, agora aposta sobretudo nas exportações. Ou seja, regressa, de alguma forma, ao que era a estratégia da anterior maioria, mas depois de muito mal feito (e de muito mal ainda por fazer).
Isto significa que há um reconhecimento de que a famosa “recuperação de rendimentos” não funcionou (nem podia funcionar, pois o que foi dado com uma mão, sobretudo aos funcionários públicos, foi tirado com a outra por via de impostos indirectos) e que é necessário voltar a olhar para as empresas e para a sua capacidade de criarem riqueza, algo que numa pequena economia como a nossa só é realmente eficaz por via da abertura ao exterior e das exportações.
Só que, como já vimos, este orçamento não é amigo das empresas, tal como o anterior não era. Resultado: uma projecção de crescimento económico minimalista de apenas 1,5% (inferior, portanto, à registada no último ano da anterior maioria, que foi de 1,6%). Para perceber melhor porque isso acontece vale a pena ler uma reportagem desta semana do Wall Street Journal (uma das bíblias da imprensa económica internacional) com um título aterrador: Europe Worries Portugal Is Prone to a Debt-Crisis Relapse. O que aí se explica é, entre outras coisas, por que é que os empresários não investem. Joaquim Beato, presidente da Molde Faianças, diz que não o faz por causa da falta de procura externa, da situação da banca e… “da incerteza sobre as políticas do governo socialista”. E Paulo Vaz, presidente da associação das empresas têxteis, concretiza: medidas como a reintrodução dos quatro feriados custaram ao sector (que continua a ser um dos mais importantes sectores exportadores) 150 milhões de euros.
Este ponto é central e indica até que ponto um orçamento é amigo do crescimento (o que requer que seja amigo do investimento e das empresas) ou, sem promover a igualdade, é sobretudo amigo das corporações, tratando de as alimentar. Têm dúvidas sobre a diferença? Então apreciem este maravilhoso tweet de Estrela Serrano, uma destacada militante socialista das redes sociais (e candidata pelo PS ao Conselho de Opinião da RTP): “Um bom orçamento é aquele que vai buscar dinheiro onde os orçamentos anteriores não descobriram que ainda havia para tirar.”
A maravilha desta mensagem é o “ainda”. Enquanto houver um “ainda” para ir sacar dinheiro, os nossos governantes e os seus acólitos mostrar-se-ão insaciáveis.
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