Uma das boas coisas que saíram do acordo entre PS e BE para a formação do actual Governo foi a criação de um “grupo de trabalho para a avaliação da sustentabilidade da dívida externa”. O relatório apresentado há dias, assinado por oito homens e nenhuma mulher, propõe um conjunto de medidas para tornar a nossa dívida sustentável. O relatório centra-se na dívida pública e não na externa, que, apesar de relacionada, não é, obviamente, a mesma coisa. Mas os autores argumentam que, desde 2008, os aumentos da dívida externa se devem essencialmente à evolução da dívida pública e que, portanto, é necessário resolver o problema desta última.

As propostas apresentadas para a redução da dívida pública podem dividir-se, grosso modo, entre três tipos. (1) Aquelas com que todos estamos de acordo, mas que não dependem de nós, (2) as que resultam de “maus-fígados” entre o Governo e o Banco de Portugal e (3) propostas demasiado arriscadas para os ténues benefícios apresentados.

No primeiro grupo, estão concentradas as propostas com maior impacto, nomeadamente, a de que a dívida pública detida pelo Banco de Portugal, que é um mero entreposto do Banco Central Europeu, se torne perpétua (ou seja, que não se pague) e que se aumente a prazo de pagamento da dívida aos nossos parceiros europeus de 15 para 60 anos, ao mesmo tempo que se reduz a taxa de juro de 2,4 para 1%. No âmbito dos tratados em vigor, a primeira proposta é ilegal. A segunda proposta é perfeitamente legal, desde que os outros países o queiram fazer. Dado que nenhum país se consegue financiar a 60 anos a uma taxa de 1%, isso equivaleria a termos a nossa dívida parcialmente paga pelos restantes países. Se o quiserem fazer, naturalmente, não seremos nós a fazer oposição.

No segundo grupo, temos as propostas relativas à distribuição de dividendos do Banco de Portugal. Queixa-se o Grupo de Trabalho que o Banco de Portugal faz demasiadas provisões, o que leva a uma redução contabilística dos lucros, que se traduz em menor receita para o Estado português — nomeadamente, menores dividendos e menor IRC. O Grupo de Trabalho propõe, então, que se reduza o montante das provisões anuais. Esta proposta tem problemas quer de curto quer de longo prazo. A curto prazo, não é de todo óbvio que seja possível alterar unilateralmente a lei que rege as provisões e nem que seja fácil de convencer o Banco de Portugal a alterar a sua política de dividendos. Sobre esta questão, vale a pena ler o artigo que Rodrigo Adão Fonseca publicou no Insurgente. A longo prazo, é duvidoso que este assunto seja importante. A constituição de provisões, que, de facto, reduz o lucro contabilístico, é uma medida preventiva que visa cobrir riscos que podem ocorrer nos próximos anos. Das duas uma, ou esses riscos se materializam ou não. Se se materializarem, então foi bom ter as provisões constituídas; se não, então, ao se desfazer a provisão, os lucros aumentarão e reflectir-se-ão em maiores dividendos no futuro. Ou seja, as provisões não têm impactos estruturais relevantes nas contas públicas.

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No terceiro grupo, podemos incluir a proposta de redução da maturidade da dívida pública. Para aproveitar as taxas de juro que são mais baixas a prazos curtos, o Grupo de Trabalho pretende que se substitua dívida de longo prazo por dívida de curto prazo. Segundo o documento, “poderia ser possível, às taxas de juro atuais, reduzir a taxa de juro implícita média da DDE [Dívida Directa do Estado] em 0,4 a 0,5 pontos percentuais, resultando numa diminuição da despesa com juros, ceteris paribus, de cerca de 390 milhões de euros em 2018, evoluindo para perto de 1300 milhões de euros em 2023, efeito esse que permaneceria após essa data.” O problema é que a cláusula do ceteris paribus (que se poderá traduzir como “tudo o resto constante”) não faz qualquer sentido neste caso. É mesmo um exemplo perfeito do uso errado que, muitas vezes, se dá a esta cláusula. O motivo pelo qual se emite dívida com maturidades mais longas é para nos protegermos de variações de taxa de juro. Ora se o risco é, precisamente, o das taxas de juro variarem, não se pode pressupor que elas não variam e daí concluir-se que não vale a pena protegermo-nos dessas variações. É como pressupor que nunca teremos acidentes de automóvel e, daí, concluir que não necessitamos de um seguro. Neste caso, o perigo de se dar preferência ao curto prazo é o de ser necessário renovar a dívida mais frequentemente; ou seja, ir mais vezes ao mercado pedir emprestado. Se as taxas de juro aumentarem, esses novos empréstimos ficarão mais caros. Numa altura em que as taxas de juro estão em níveis historicamente baixos, deve-se fazer o oposto: emitir mais dívida de longo prazo, fixando uma taxa de juro baixa por vários anos. Isto ainda é mais verdade na conjuntura actual, em que é difícil de prever o que acontecerá às taxas de juro à medida que o BCE for terminando com a actual política de compra de activos financeiros.

Em 2016, o Governo surpreendeu todos ao cumprir as metas para o défice. No anterior Plano de Estabilidade, o défice previsto era de 2,2%, pelo que, com o défice de 2%, até se pode dizer, com pouco rigor, que o Governo foi para além da troika. No actual Plano de Estabilidade (definido para 2017-2021), prevê-se que o défice seja basicamente nulo em 2019-2020 e que em 2021 seja fortemente superavitário (1,3%). Com isto, ao mesmo tempo que o Governo destrói o discurso dos partidos de direita, também arrasa com o discurso quer dos partidos mais à esquerda quer dos seus próprios militantes mais esquerdistas, para quem cumprir as metas do Tratado Orçamental era uma impossibilidade sem uma forte reestruturação da dívida.

Na verdade, nem é preciso ser tão ambicioso como o Governo no seu Plano de Estabilidade. Não precisamos de superávites, basta não ter défices. Se se conseguir um saldo orçamental nulo em 2020, que se mantenha nulo daí para a frente, a dívida pública nominal será constante. Bem sei, parar de aumentar a dívida parece uma proposta muito radical para resolver o problema do excesso de dívida. Mas, se concretizada, o rácio da dívida cairá à medida que o PIB cresce. Se admitirmos que, em média o PIB real cresce a 2% (taxa de crescimento verdadeiramente medíocre) e que a inflação é de 1,5% (abaixo da meta de 2% definida pelo BCE), então, em 2037, a dívida pública representará quase 70% do PIB, mesmo admitindo os 130% como ponto de partida em 2020. (Note-se que o Plano de Estabilidade é bem mais ambicioso, admitindo que, em 2020, a dívida pública será 117% do PIB e que, em 2021, o saldo orçamental terá um excedente de 1,3%.)

Difícil? Com certeza que sim, mas não impossível. Muitas pessoas assustam-se ao pensar que necessitamos de saldos nulos por vários anos. Vêem nestes números uma austeridade permanente. Mas tal não é verdade. Os efeitos contraccionistas de manter um saldo de 0% são os mesmos que os de manter um défice, por exemplo, de 2%. O que tem efeitos recessivos não é manter os saldos, mas sim melhorá-los. Mas, caramba, se em poucos anos reduzimos o défice de 11 para 2%… Já só falta um bocadinho para chegar ao zero.

Não quero dourar demasiado a pílula. Saldos orçamentais nulos implicam saldos primários (ou seja, antes de pagar os juros) positivos. No relatório, os autores consideram irrealista ter saldos primários positivos durante anos a fio. Passo a citar:

Não existe registo histórico de país da União Europeia que tenha sido alguma vez capaz de obter saldos primários continuamente superiores a 2,0% do PIB ao longo de vários anos com taxas de crescimento do PIB nominal não superiores a 3,2% (valor que assumimos nos cenários apresentados), pelo que não se afigura plausível que Portugal o venha a fazer.

Este argumento histórico não faz sentido. Nenhum país teve saldos orçamentais primários fortemente positivos durante anos a fio porque, em condições normais, é estúpido fazê-lo. Se a dívida de um país tem um valor decente, por exemplo, 50% do seu PIB, é tolo ter saldos positivos durante duas décadas. Tal significaria que se estavam a cobrar mais impostos do que o necessário para cobrir as despesas do Estado. Naturalmente, o que haveria a fazer seria, dependendo da ideologia dominante, ou reduzir impostos ou aumentar as despesas públicas. O facto de nunca ter sido feito, como os autores do estudo alegam, não significa que seja impossível fazer. Pode indicar, simplesmente, que nunca foi necessário fazê-lo.

Não quero, de forma alguma, dizer que a tarefa que temos pela frente é fácil. Muita coisa pode correr mal nos próximos 20 anos. Por exemplo, ninguém sabe muito bem o que acontecerá quando o BCE deixar de nos apoiar como apoia. Mas, neste momento, e até por esse motivo, para tornar a dívida pública sustentável uma das nossas principais preocupações deveria ser convencer as principais agências de rating a melhorar a nossa notação de risco. Continuar a fazer propostas irresponsáveis e a argumentar que a nossa dívida tem de ser reestruturada apenas serve, como é óbvio, para convencê-las a não o fazer.