Muito se disse e escreveu a propósito da recente visita do presidente do Irão ao Vaticano, onde foi recebido pelo Papa Francisco, a quem pediu orações, e a Itália, onde se encontrou com as autoridades italianas. Contudo, para além dos contratos que o chefe de Estado persa logrou negociar, o que mais chamou a atenção da imprensa internacional foi o ocultamento de algumas esculturas que, ao que parece, feriam a susceptibilidade religiosa de Hassan Rouhani. A insólita iniciativa terá partido da delegação iraniana e levou as autoridades italianas a entaiparem a Vénus capitolina e outras estátuas.
Importa recordar que a despida Vénus, bem como os outros nus que foram pudicamente cobertos, aquando da estadia do chefe de Estado iraniano no Capitólio, fizeram parte do património da Igreja católica, até ao momento em que Roma foi invadida pelo exército de Garibaldi e a Santa Sé espoliada de muitas das suas obras de arte pelo Estado italiano. Ou seja, as esculturas clássicas, que agora tanto escandalizaram os líderes iranianos, foram coleccionadas pelos papas, que zelosamente as guardaram, durante séculos, nos seus Estados!
Assim o recordou, a 23 de Junho de 1974, cerca de um ano antes da sua morte, S. Josemaria Escrivá. Interpelado por uma actriz, que deplorava a indecência de certas manifestações artísticas, o fundador do Opus Dei manifestou-se apreciador de escultura e até, surpreendentemente, admirador do nu clássico em geral e, em particular, da Vénus capitolina:
“- Minha filha, eu não tenho nenhum inconveniente em te dizer que gosto muito do nu clássico e que me dá presença de Deus. Há uma Vénus, a Vénus capitolina, que está no Capitólio, em Roma. Não foi Satanás que a guardou, mas foram os papas que a guardaram e a puseram lá, nesse museu. Está exposta numa sala, sozinha, sem nenhuma roupa. Eu contemplei a sua casta nudez e dei graças a Deus pela beleza das mulheres. Não tive nenhum mal pensamento, nem nenhum mau desejo. […] Minha filha, sê artista! Artista da alma e artista das cores! Com simpatia, diz aos teus colegas artistas que não sejam ordinários. Que, podendo ser criaturas de Deus, não sejam animalescos. E diz-lhes também que estiveste com um padre – que tem muita devoção a Nossa Senhora, que é Mãe castíssima e Virgem Imaculada – que admirou, com gratidão a Deus Nosso Senhor, nada mais nem nada menos do que … uma Vénus: a Vénus capitolina!”.
A solução encontrada pelas autoridades italianas não foi, decididamente, nada feliz. Nem nada romana, por sinal, se tivermos em conta que, no centro da praça de São Pedro, ergue-se um magnífico obelisco egípcio, que os papas não só não destruíram – como decerto fariam os talibãs ou o Daesh, o chamado Estado islâmico – como respeitaram e dignificaram, não obstante o seu carácter pagão. Aliás, outro tanto fizeram, salvo alguma excepção, os pontífices romanos, com os foros e o coliseu, onde foram martirizados tantos cristãos, sem esquecer o panteão, símbolo máximo do paganismo romano, que a Roma papal também preservou. Como se escreve na Bíblia, “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3, 17), ou seja, para redimir tudo o que é genuinamente humano, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é bom, tudo o que é belo (cfr. Flp 4, 8).
É razoável respeitar a sensibilidade cultural e religiosa dos nossos mais ilustres hóspedes, mas não ao ponto de negar a identidade nacional, nem ocultar os monumentos mais expressivos da nossa cultura e religiosidade tradicional. A ninguém temos que pedir desculpa pela nossa história, nem pela nossa cultura, nem pelos nossos valores. Quem nos vem visitar deve também aceitar o país que somos. Seria de uma indesculpável cobardia ocultar a estátua de Afonso de Albuquerque, a propósito de uma eventual visita de um estadista indiano; ou o obelisco comemorativo da restauração da independência, por ocasião de uma visita oficial dos monarcas espanhóis; ou ainda cobrir a estátua do marquês de Pombal, que tanto perseguiu a benemérita Companhia de Jesus, quando o jesuíta Papa Francisco quiser abençoar, com a sua presença, esta terra de Santa Maria.
Esconder a Vénus capitolina e outras estátuas clássicas, que são honra e glória da civilização europeia, foi uma atitude vergonhosa e antipatriótica: não merece respeito um país que não assume a sua cultura e os seus valores. A tolerância é uma atitude a fomentar nas relações com os outros Estados, culturas e religiões, mas não se deve ser tolerante com os intolerantes.