Há, no Portugal de hoje, quem saia do país para trabalhar, durante uns meses, numa fábrica, para depois ir para outra e outra. Não são emigrantes, nem mesmo nómadas, porque nunca andam com a família. Vão para onde há trabalho e regressam para irem outra vez. Há empresas especializadas em encontrar os técnicos que as grandes fábricas do mundo precisam. Há pessoas disponíveis para fazerem esses sacrifícios, de ficarem meses longe da família, num ritmo de “trabalho casa, casa trabalho” em que a casa é partilhada com outros trabalhadores. São os casos extremos do trabalho por conta própria, que na esmagadora maioria dos casos até é ditado pelas possibilidades criadas pelas novas tecnologias.
É justo? Claro que não. O mundo ideal por que temos de lutar é aquele em que conseguimos conciliar tudo: um bom rendimento e uma organização em que coordenamos o trabalho em empresas com o lazer em família. Mas o mundo é cada vez menos assim e todos sabemos isso. O que faz com que, mais injusto do que ter de ser uma espécie de nómada para ganhar a vida ou um trabalhador “uber”, exista quem possa não o ser e não saiba aproveitar.
Vivemos num mundo cada vez mais desigual, num mundo em que uns são mais iguais do que outros. Em que os mais iguais querem e conseguem (por enquanto) cada vez mais e mais, e os que têm menos cada vez menos e menos.
Vem isto a propósito da greve na Autoeuropa, a primeira realizada apenas pela empresa – como se explica aqui. Não está obviamente em causa o direito à greve. Mais do que um direito, a greve é uma ferramenta fundamental para reequilibrar os poderes da comunidade que é a empresa, uma estrutura nascida com a Revolução Industrial.
Infelizmente, até esta arma, a greve, está cada vez mais limitada ao uso de alguns, poucos, aqueles privilegiados, cada vez em menor número, que ainda trabalham em organizações nascidas na Revolução Industrial – as empresas clássicas. E mesmo nas empresas clássicas são poucas aquelas em que os trabalhadores têm acesso a esse direito. Porquê? As razões podem ser várias, como um acentuado desequilíbrio de poderes ou o descrédito em que caiu o movimento sindical, num círculo em que as duas realidades se reforçam mutuamente.
O caso da Autoeuropa é exemplificativo. Durante décadas a comissão de trabalhadores liderada por António Chora conseguiu conciliar a defesa dos direitos dos trabalhadores com a paz na empresa. Com a saída do sindicalista, que permitiu que a fábrica de Palmela fosse um exemplo no universo da Volkswagen, e após ter conquistado a produção do modelo T-Roc tudo muda. A greve é dinamizada pelos sindicatos e não pela Comissão de Trabalhadores que aliás está demissionária porque os trabalhadores chumbaram o primeiro acordo em plenário.
A produção do novo modelo gera grandes mudanças nas rotinas de quem trabalha na fábrica, nomeadamente porque se passa a ter de trabalhar aos sábados e à noite. E a proposta de remuneração por parte da empresa não foi suficiente para compensar essas mudanças. Isso só por si pode explicar a razão pela qual temos, pela primeira vez, uma greve na Autoeuropa. Mas tudo o resto é inexplicável à luz dos interesses dos próprios trabalhadores.
O razoável seria esperar pela eleição da nova Comissão de Trabalhadores e só depois partir para a renegociação do acordo e usar a arma da greve, se tal fosse necessário. Não foi isso que aconteceu. E, de repente, vemos o líder da CGTP, Arménio Carlos, a falar da greve na Autoeuropa e percebemos. Entre as declarações que fez congratulou-se por não ter sido produzido um único carro nos dias de greve.
Perante estes factos, a defesa dos interesses dos trabalhadores aparece como um sub-produto do objectivo principal: a CGTP, afecta ao PCP, quer controlar sindicalmente a Autoeuropa que até agora estava sob a influência do Bloco de Esquerda. Esta é a principal batalha que se desenrola na fábrica e para a qual cada parte está a mobilizar as suas tropas. A defesa dos interesses de quem trabalha na fábrica está em segundo plano. Caso exista um conflito entre os dois objectivos, vai dar-se prioridade ao que garantir a vitória do sindicato e não dos trabalhadores.
São estas batalhas, que colocam os interesses partidários acima dos interesses dos trabalhadores, que têm contribuído para a desacreditação dos sindicatos, enquanto organizações de defesa de uma das partes que integra a comunidade empresa. Mas há também outros factores mis recentes, como o individualismo e na era actual a arma letal para os sindicatos que é a nova organização do trabalho simbolizada pela Uber.
É esta nova organização do trabalho que faz de quem trabalha na Autoeuropa e noutras grandes empresas com estruturas clássicas – e no Estado – um grupo de privilegiados, de pessoas que vivem numa bolha. Todos queremos entrar para essa bolha mas infelizmente não vamos conseguir. Até porque essa bolha está cada vez mais pequena, emagrecida pelas mudanças que a tecnologia está a gerar na organização da produção. As clássicas empresas, aqueles sítios para onde se converge para produzir, estão na sua maioria condenadas a morrer.
É a era da revolução industrial a terminar. Até lá haverá uns, – os que ainda conseguem viver na organização anterior -, mais iguais do que os outros, – os que já trabalham segundo as regras da era tecnológica cuja principal característica é a quase ausência de direitos laborais. Neste novo mundo todos são trabalhadores por conta própria ou “precários”. A principal fonte de desigualdade (e instabilidade) está nesta diferença de mundos, entre os que vivem na protecção da bolha e aqueles que trabalham fora dela. Por enquanto os partidos só pensam nos que são mais iguais do que os outros, nos que vivem na bolha como quem trabalha para o Estado ou para “autoeuropas”.