Quarta-feira foi um dia triste, muito triste. O Reino Unido enviou a carta de divórcio da União Europeia. O divórcio será mau para ambos. Há muitos anos (too many to care), cheguei a Cantebury para fazer o mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Kent. Fiquei imediatamente apaixonado pela cidade e pelos campos à sua volta. Cinco minutos de bicicleta e estava no “country side”. Há poucas experiências tão gloriosas como um dia de sol no campo em Inglaterra. Também me inspirei na cultura e no pensamento britânico, e não parei desde então. Juntando as minhas duas passagens pelo Reino Unido, já tenho oito anos de vida britânica. Conheço muito bem os defeitos e os problemas dos britânicos. Mas hoje não é dia para criticar o que é negativo, mas para evocar o que admiro. Admiro profundamente três traços da cultura britânica. Antes de mais, o sentido de humor e a excentricidade. Não se levam demasiado a sério. They make fun of themselves. Desvalorizam os seus feitos. E respeitam e admiram os excêntricos como nenhum outro país na Europa. Como diz um amigo inglês, “much better to stand out than to fit in.” Marcas de um povo saudável.
Em segundo lugar, gosto muito da educação e do respeito que existe no Reino Unido. Em regra, os britânicos não acham que toda a gente lhes deve tudo, ou que estão acima dos outros. Percebem que a vida social exige boas maneiras. Mas, mais importante, não se comportam como se os espaços públicos fossem propriedade privada. Por fim, considero que o cepticismo e o pragmatismo britânicos são indispensáveis para nunca pararmos de aprender. Os britânicos em geral resistem a formar opiniões sem conhecer os factos. Desconfiam de grandes e ambiciosos planos. Preferem prometer menos do que fazem e fazer mais do que prometem. O humor, a educação e o cepticismo britânicos vão fazer falta à Europa.
Continuei a minha formação no Reino Unido, com o doutoramento na London School of Economics. Quando se estuda a história europeia do século XX, percebe-se que a experiência britânica é diferente de muitos países europeus. Para a maioria dos países europeus, a democracia liberal, a economia de mercado e a prosperidade, e a paz vieram com a integração europeia. A “Europa” foi o destino que permitiu a fuga a ditaduras, à pobreza e às guerras. Mas o regime democrático e parlamentar e a economia de mercado não chegaram às ilhas britânicas com a Europa. Nem mesmo para a segurança nacional, a integração europeia é indispensável. Para os britânicos, a geografia garante mais a segurança do que a partilha de soberania. Mais, em grande medida, os valores e as instituições da “Europa” pós-1945, pós-1974 e pós-1989, surgiram, desenvolveram-se e foram cultivados no Reino Unido. Uma divisão entre países com valores e instituições semelhantes é quase impossível de entender.
Muitos anos mais tarde, trabalhei na Comissão Europeia. Rapidamente, percebi a influência positiva do Reino Unido. Uma potência indispensável para limitar o poder franco-alemão. Quem vai agora liderar aqueles, pequenos e médios, que querem resistir a algumas das tentações de Berlim e de Paris? Quem vai ser o grande país, sempre disposto a defender as regras e o direito? O Reino Unido foi sempre um dos países com menos violações do direito comunitário. No dia em que as regras deixarem de limitar o poder arbitrário dos maiores, a União Europeia acaba. O país que estava sempre na linha da frente a defender o mercado único e o comércio, vai agora abandonar o espaço económico europeu e a união aduaneira.
Além do Estado britânico, a cultura britânica também fará muita falta à Europa. O pragmatismo britânico foi sempre indispensável para travar os fervores mais ideológicos de muitos nas instituições europeias. E o cepticismo britânico temperava os excessos voluntaristas daqueles que acham que a integração europeia nunca deve parar.
Não tenho dúvidas de que o Reino Unido ficará pior fora da União, possivelmente até dividido, com a saída da Escócia. Mas a Europa também ficará pior. Quem julga que será apenas a mesma União com menos um, está enganado. Não há Europa sem os britânicos. Vamos todos ficar pior. Nem sequer vale a pena arranjar culpados. É mais profundo e mais terrível do que isso. A história começou a andar na direção errada. O Brexit foi o primeiro passo. Mas temo que não vamos ficar por aqui. Este dia 29 de Março foi um dia triste. No futuro, poderá ser um dia trágico.